JOSÉ FIGUEIREDO

Marx e os Banqueiros Centrais

“Proletários de todo o mundo, uni-vos!”. Assim rezava a exortação de Karl Marx e Friederich Engels, aos deserdados da terra, no Manifesto Comunista de 1848.

O último sítio onde esperaríamos encontrar alguma ressonância desta velha máxima revolucionária seria certamente no meio dos banqueiros centrais.

Desde logo porque os bancos centrais são uma das instituições básicas do capitalismo moderno, depois porque os banqueiros centrais são, por dever profissional, os guardiões da estabilidade de preços. Aos banqueiros centrais, poucas coisas deveriam causar mais horror que aumentos de salários nominais fora da “norma” porque, quando isso acontece, mais dia menos dia, os aumentos salariais haverão de se refletir nos preços dos produtos e lá fica a inflação em desmesura.

Não deixa, por isso, de soar vagamente estranho o lamento público de Philip Lowe, governador do Royal Bank of Austrália, pelo facto de os salários nominais não crescerem mais que 2% ao ano. Classificou esta tendência como “insidiosa” e apelou aos trabalhadores para exigirem salários mais altos.

Mas tenhamos calma – do que se trata aqui não é de uma conversão serôdia ao marxismo. Na verdade, enquanto banqueiro central, o que Philip Lowe teme é que, na ausência de alta dos salários e depois dos preços, o público perca a confiança na eficácia da política monetária e consequente no modelo de governo do capitalismo moderno.

E tem boas razões para isso!

Admito que, por estes dias, os banqueiros centrais durmam mal.

Nem é tanto por os resultados não aparecerem. Na verdade, o primeiro dever dos banqueiros centrais é colocar os preços a crescer a 2% mais coisa menos coisa e isso está longe de acontecer.

Mas tanto quanto posso ver, o mau dormir não vem do fracasso em matéria de resultados, vem do facto de os banqueiros centrais não perceberem o que está a acontecer.

Durante as últimas décadas, os economistas e os banqueiros centrais navegaram no grande consenso que se formou à volta de um conjunto de conceitos que, em última análise, dependiam de uma relação inversa entre o crescimento dos salários nominais e o desemprego, a famosa curva de Philips.

Acreditámos que existiria uma taxa de desemprego “natural” na economia.

Quando a taxa de desemprego real anda por cima desse valor, a expansão monetária aumenta o emprego e o output sem acelerar a inflação. Por isso, também se chamou a essa taxa de desemprego NAIRU (Non Acelerating Inflation Rate of Unemployment).

Quando a economia está próxima da NAIRU, expandir a oferta monetária pouco ou nenhum efeito produz no emprego e no output mas acelera a inflação.

O papel dos banqueiros centrais seria, assim, evitar que a economia se afastasse em demasia da taxa natural de desemprego o que é o mesmo que dizer, garantir a estabilidade dos preços, entendida esta como um crescimento moderado, não muito longe dos 2% por ano.

Não é fácil imaginar um modelo mais elegante ou mais simples. Em cima disso, o modelo funcionou muito bem durante décadas o que nos levou, com o tempo, a tomá-lo como algo definitivo, válido para todo o sempre.

O problema é que, nos últimos anos, por mais que o desemprego desça os benditos dos salários teimam em não subir.

Em todos os países onde a taxa de desemprego já regressou para níveis próximos dos que vigoravam antes da crise (Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Japão, etc.,) os salários teimam em não subir.

O caso mais emblemático é o Japão, onde a taxa de desemprego é inferior a 3%, onde há dois empregos disponíveis por cada trabalhador desocupado e, mesmo assim, preços e salários estão a crescer 0,4% ao ano, ou seja, quase nada.

Porque razão ficou a curva de Philips tendencialmente plana? Simplesmente não sabemos!

Em textos anteriores já percorremos o calvário das explicações mais ou menos convencionais que permitem salvar o modelo.

A equação de Philips já não é relevante a nível local, também ela se globalizou. Porventura continua válida, mas a nível global. Talvez haja uma falha da procura na economia global. Talvez…

O mercado do trabalho mudou, está mais atomizado. Pois está! Mas não explica tudo.

Choques na oferta? Com certeza! Os preços do petróleo estão na casa dos 50 USD por barril e isso não ajuda ao crescimento dos preços. Talvez outros choques do lado da oferta estejam a deprimir os preços. Talvez…

Poderíamos aqui levantar e a seguir deitar por terra um milhão de hipóteses. Mas seria um exercício estulto porque, na verdade, simplesmente ignoramos porque estão as coisas a acontecer deste modo.

Nestas alturas, quando andamos um bocado perdidos, é sempre bom procurar algum abrigo na história.

Em boa verdade, não é a primeira vez que a curva de Philips claudica. Aliás, Andrew Haldane, num discurso recente, mostrou que a curva de Philips, se colocada numa perspetiva histórica verdadeiramente secular, recuando por exemplo até ao início do século XIX, é mais plana que inclinada. Na volta, a nossa querida curva, com a sua inclinação tão lógica, tão racional e que funcionou tão bem durante três décadas, não é mais que um blip, uma exceção histórica que guardaremos um dia no baú das curiosidades.

Mas não precisamos de recuar até ao início do século XIX para ver curvas de Philips avariadas - vimo-las nos anos 70 quando desemprego elevado e inflação a sério conviveram alegremente.

O que nos chama a atenção para uma pista promissora – a política.

A inflação é um fenómeno económico, logo social, logo político. Nos anos 70 fomos surpreendidos com o choque petrolífero, com uma subida abrupta de preços e uma luta política para dividir um bolo que encolhia entre ricos e pobres, patrões e empregados, credores e devedores, etc.

Nessa altura os assalariados ainda tinham algum poder (ainda havia sindicatos fortes). As ideologias políticas dominantes eram a social-democracia e a democracia cristã, antes de serem poluídas com as incursões da terceira via ou do neoliberalismo (termo horrível e sem sentido).

Ou seja, era uma guerra equilibrada com armas dos dois lados, até no sentido literal do termo. Não por acaso, nessa altura, surgiram um pouco por todo o lado movimentos extremistas, à esquerda e à direita, que optaram pela luta armada.

A política da altura, com os seus excessos e com as suas coisas boas (que hoje nos fazem falta) vergou a curva de Philips e de que maneira!

A política de hoje também está a vergar a preciosa curva, mas de outro modo.

Ainda há uns dias, Martin Sandbu, um dos mais interessantes jornalistas do Financial Times, se perguntava porque não houve um New Deal depois de 2008/2009, porque não ocorreu algo de similar aos programas de Roosevelt depois do desastre de 1929/1933.

E a resposta, para Martin Sandbu, é chã. Hoje, simplesmente, não haveria espaço político para um Roosevelt.

Assim como nos anos 70 a luta política, nas condições da altura, transformou o choque petrolífero numa espiral inflacionista e com desemprego alto, atualmente, o ambiente político atual, o conformismo político que domina esmagadoramente nos media, impede que as condições favoráveis do mercado de trabalho se transformem em crescimento dos salários e crescimento dos preços.

Os excessos dos anos 70 deram-nos Margaret Thatcher e Ronald Reagan, o capitalismo míope dos nossos dias traz-nos Donald Trump, o Brexit e o ascenso dos populismos foleiros.

Ou muito me engano ou ficámos a perder!

 

Data de introdução: 2017-08-10



















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