JOSÉ FIGUEIREDO (ECONOMISTA)

1. As Grandes da Tecnologia – O Assalto Fiscal

O tema das grandes empresas tecnológicas, das quais as mais conhecidas se abrigam sob a sigla FANG (Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google), é um tema inescapável, desde logo pela dimensão colossal que essas empresas atingiram mas, sobretudo, pela forma como os seus produtos e serviços influenciam e condicionam a vida de biliões de seres humanos.

Para se ter uma ideia da dimensão do fenómeno “tecnológico” bastará um pequeno conjunto de indicadores.

Em 2006, entre as 20 maiores capitalizações bolsistas do mundo havia apenas uma empresa tecnológica que valia 7% do total do top20. Atualmente, entre as 20 maiores, há 8 tecnológicas que valem 54% do total do top 20. Entre 2008 e 2016 as 5 maiores companhias de retalho eletrónico cresceram 32% ao ano enquanto as tradicionais retalhistas dos “bricks&mortars” cresciam a 1% ao ano.

Das 8 magníficas tecnológicas, 5 são americanas, 2 chinesas e 1 sul coreana e (ooopps!...) nenhuma europeia. A primeira tecnológica europeia, a SAP, é ranking 60 nas 100 maiores empresas do mundo.

Parece-me indesmentível que o ascenso da “tecnologia” nos trouxe muitas coisas boas. Contudo, tem um lado negro, ou melhor, tem um bom par de lados negros.

Hoje gostaria de tratar de um desses lados sombrios: o assalto fiscal. As empresas tecnológicas ganham imenso dinheiro. Só as 5 magníficas FANG terão este ano lucros líquidos não muito longe de 100 biliões de dólares, qualquer coisa como metade do PIB português. Em contrapartida, a conta fiscal efetiva destas empresas é muito pequena. Trata-se de um escândalo sem nome.

É verdade que o problema da evasão fiscal não é um problema exclusivo das empresas tecnológicas, é um problema global e transversal a todo o tipo de atividades.

A possibilidade da evasão fiscal “limpa” dos nossos dias deriva de múltiplos fatores, mas gostaria de mencionar dois: o primeiro é a progressiva desmaterialização do valor, o segundo é a extrema diversidade de regimes fiscais que existe no mundo atual.

De facto, as regras fiscais atuais referem-se a um mundo de há um século quando as transações eram essencialmente físicas e implicavam estabelecimentos permanentes.

Não que, mesmo nesses bons velhos tempos, não fosse possível fazer planeamento fiscal – na verdade, sempre se fez. As multinacionais sempre puderam transferir resultados para locais convenientes, por razões fiscais ou outras, recorrendo, por exemplo, a sobre e subfacturação. Só que tudo isso tinha limites. Embora os incentivos da multinacional e agilidade dos seus agentes fosse seguramente superior à dos guardas-fiscais, a verdade é que todos sabiam que, para lá de certos limites, o risco seria muito grande.

No entanto, as empresas tecnológicas, dado o carácter imaterial daquilo que vendem, dado o facto de a fonte da riqueza ser sobretudo informação (dados) e propriedade intelectual e porque não necessitam para o seu comércio de estabelecimento físicos nos locais onde as transações decorrem, estão particularmente “calhadas” para a evasão fiscal em larga escala e feita com toda a “limpeza”.

Dois exemplos muito simples.

Ainda há poucos anos comprávamos livros nas livrarias. Hoje podemos comprar ebooks que são meros ficheiros de informação sem qualquer suporte físico. Mas mesmo que compremos o objeto físico podemos fazê-lo pela Amazon, sem qualquer interferência de agentes económicos locais, a menos da empresa de transportes que faz a entrega dos packs em nossas casas.

Não há nada de mais “local” que o alojamento hoteleiro. Contudo, a transação dos hotéis é hoje em larga medida global e desmaterializada. Nos bons velhos tempos comprávamos o hotel numa agência de viagens local que captava parte da margem do negócio, em geral através de uma comissão de agência, que somava ao PIB e aos impostos locais, hoje compramos na Booking e nem sequer sabemos onde as margens estão a ser formadas e sob que regime fiscal são tributadas.

A progressiva desmaterialização e deslocalização do valor e abundante oferta de regimes fiscais amigáveis, fez das empresas tecnológicas as maiores beneficiárias da evasão limpa aos impostos.

O caso da Apple na Irlanda é particularmente expressivo. A Apple criou uma estrutura corporativa na Irlanda, a Apple Sales International (ASI) para onde são canalizados o essencial dos lucros da venda dos smartphones na Europa, Médio Oriente, África e Índia. A ASI compreende uma operação “normal”, com funcionários e instalações físicas para regular a operação, e um head office que não tem nem instalações físicas nem empregados. Em 2011, por exemplo, dos 16 biliões de lucros da ASI, apenas 50 milhões foram alocados à operação “normal” que pagou 10 milhões em impostos. Tudo o resto foi alocado ao head office que, de acordo com o tratado fiscal com a Irlanda, não paga impostos. Feitas as contas os 10 milhões de impostos pagos representam cerca de 0,06% dos lucros consolidados da estrutura corporativa ASI.

Esta imoralidade é absolutamente legal. Se Margrethe Vestager, a Comissária Europeia da Concorrência, encontrou uma ponta por onde lhes pegar não foi nos impostos, foi no quadro da concorrência, ou seja, dizendo que a Irlanda concedeu à Apple um benefício ilegítimo, ilegítimo porque não está disponível para os concorrentes e, desse modo, é possível arguir concorrência desleal.

A indignação serve de pouco nestes casos. Talvez mesmo a iniciativa de Margrethe Vestager não adiante grande coisa. Afinal a Irlanda recusa-se a cobrar os 13 biliões de euros em impostos atrasados que a comissária europeia diz estarem em dívida e a Apple recorreu aos tribunais sendo tudo menos certo qual o desfecho final da novela.

O problema é que o vetusto princípio de que os lucros devem ser tributados onde o valor é criado está claramente em causa com a nova economia digital – uma nova abordagem é necessária.

Imaginemos um subscritor europeu de plataformas de música ou de vídeos. Embora o consumo ocorra na Europa a verdade é que a operação e os resultados podem estar em qualquer lugar neste vasto mundo. Como tributar? Do mesmo modo, quando uma rede social vende publicidade especialmente dirigida a consumidores europeus (que conscientemente ou não cederam os seus dados pessoais à rede social), o valor criado pela venda dos anúncios está na Europa, contudo, a operação e o lucro podem estar em algures. Como tributar?

Curiosamente a Comissão Europeia (CE), da qual sou crítico em muitas ocasiões, está, nesta matéria, a fazer um trabalho notável.

As propostas da CE apontam para uma abordagem totalmente nova do conceito de matéria tributável.

O princípio básico é o seguinte: independentemente do local onde a contabilidade da multinacional aloja os lucros, a tributação dos lucros em cada estado será aplicada na base da repartição do negócio da empresa de acordo com uma chave tripla: trabalhadores, ativos e vendas.

Cada estado tributará então os lucros, apurados desta forma, de acordo coma sua legislação fiscal, isto é, não é necessária qualquer harmonização fiscal entre estados.

Se a Irlanda quiser continuar a cobrar zero de impostos à Apple está à vontade. A diferença em relação à situação atual é que só o poderá fazer em relação ao negócio da Apple que é mesmo irlandês, em relação ao negócio em França, Alemanha ou Portugal (de acordo com a chave de repartição que vier a ser aprovada) será o regime local a vigorar.

Isto está ainda a dar os primeiros passos. Mas direção parece certa. Pelo menos nos impostos poderemos, a seu tempo, acertar-lhes o passo!

Mas os impostos são apenas um dos lados negros da coisa. Há outros piores. Ficam para as próximas crónicas. 

 

Data de introdução: 2017-12-07



















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