A Internet nasceu como a utopia da modernidade - um meio de comunicação democrático, não hierárquico, imune ao controlo dos poderes, seja do estado, das academias, do capital, etc. Todos podemos publicar tudo, protegidos (caso queiramos) pelo anonimato…
E, no entanto, a utopia libertária arrisca-se a virar distopia e pesadelo.
As redes sociais amplificaram o sonho libertário, mas também os riscos distópicos. Um dos casos mais comentados (não necessariamente o mais grave) será, porventura, a interferência russa nas eleições americanas, através da utilização massiva de informação falsa e publicidade política intencional divulgadas nas redes sociais, nomeadamente na Facebook e no Twitter. Terão ajudado um louco a chegar a presidente da nação mais poderosa do mundo.
Chegámos ao atual estado de coisas na base de dois princípios de neutralidade ambos defensáveis no quadro utópico inicial: o primeiro é que os fornecedores dos serviços da internet (IP) devem ser neutros em relação aos utilizadores, o segundo é que as plataformas eletrónicas (redes sociais, por exemplo) devem ser neutras em relação aos conteúdos.
O primeiro princípio diz que os IP não podem discriminar entre utilizadores, isto é, o meu tráfego vale o mesmo e deve ser tratado da mesma forma que o tráfego de uma grande empresa, a Amazon, por exemplo.
No fundo, é o mesmo princípio dos telefones. Os operadores redes de telemóveis tratam todas as chamadas por igual – o que circula nas redes são bits de informação indistintos e absolutamente equivalentes para todos os efeitos.
Este princípio de neutralidade (net neutrality) foi defendido numa perspetiva progressista e incorporado em muitos quadros legislativos nacionais. A ideia era evitar que os IP (basicamente as grandes empresas de telecomunicações) pudessem, por exemplo, vender rotas de tráfego mais rápido, com preço diferenciado, a quem estivesse disponível para o pagar como, por exemplo, as grandes do comércio eletrónico (Amazon, Netflix, Priceline, etc…) deixando para os utilizadores comuns, como indivíduos e pequenas empresas, um serviço de segunda categoria.
Consta que o inferno está cheio de boas intenções e esta bem poderá ser uma delas.
Na verdade, quem ganhou com a “net neutrality” foram as gigantes da tecnologia, em certa medida à custa das empresas de telecomunicações. As gigantes tecnológicas, como a Facebook, fazem margens a rasar os 50% enquanto a generalidade das telecoms se contenta com margens de um dígito único. Na verdade, a fortuna da Google ou da Facebook resulta justamente do facto de ser fácil para todos aceder aos seus conteúdos, deixar por lá informação pessoal que depois é monetizada na forma de publicidade superdirigida.
Também é verdade que, na ausência da neutralidade, a vida poderia ser mais difícil para as startup – não teriam poder financeiro para pagar tráfego de qualidade contra as empresas maiores e já instaladas. Um mundo não neutral seria mau para a inovação.
O argumento é verdadeiro. Contudo as atuais gigantes da tecnologia dispõem de um tal poder, nomeadamente em termos financeiros, que, provavelmente, abafam mais a criatividade e inovação que eventuais regras não neutrais de acesso aos IP.
É, no mínimo, um tema para debate!
A neutralidade dos conteúdos é ainda mais controversa. O caracter democrático e não hierárquico da net implica um direito a publicar que não pode ser limitado por autoridades públicas, académicas, religiosas, políticas, etc.
O anonimato é, porventura, mais discutível. O anónimo pode atacar cobardemente os adversários e, nesse caso, é moralmente repugnante.
No entanto, temos de reconhecer que existe um ângulo de defesa do anonimato. Quer o diga James Damore, o engenheiro de sistemas que denunciou discriminações de género na Google e que, por causa disso, foi prontamente despedido. Se a denúncia tivesse sido feita sob anonimato protegido talvez ainda por lá andasse e a ajudar à causa! O facto de o criador da Bitcoin se ter desde sempre protegido sob o pseudónimo de Satoshi Nakamoto foi, porventura, essencial para o nascimento dessa notável criação intelectual.
A linha de defesa da Facebook ou da Twitter é a seguinte: nós não somos meios de comunicação, somos apenas plataformas eletrónicas onde pessoas livremente colocam conteúdos. A frase da COO da Facebook, Sheryl Sandberg é lapidar: “No nosso coração somos uma empresa tecnológica, contratamos engenheiros. Não contratamos repórteres, ninguém é jornalista, não cobrimos notícias.”.
Obviamente trata-se de cinismo em estado puro - a Facebook é (só!) a maior fonte de notícias do mundo.
Claro que a Facebook quer evitar a todo o custo ser classificada como meio de comunicação para não ter de sujeitar-se às responsabilidades daí decorrentes.
A lei americana, a “Communications Decency Act” é de 1995 e protege os “fornecedores de serviços interativos entre computadores” da responsabilidade pelos conteúdos que transmitem desde que não sejam produzidos diretamente pelos próprios. Fazia todo o sentido em 1995 para proteger as empresas que, na altura, se limitavam a transmitir conteúdos alheios e sobre os quais não era suposto terem (ou deverem ter) qualquer controlo. Da mesma forma que, logicamente, não podemos responsabilizar as empresas que produzem papel de jornal pelo que, depois, é pintado e editado sobre o mesmo papel.
Só que, em 1995, não existiam nem Facebook nem Twitter nem era possível antecipar que pudessem surgir. Não era possível antecipar que plataformas eletrónicas de intercâmbio social pudessem tornar-se em máquinas potentíssimas de produção e divulgação de informação com manifesto interesse público, mas sem qualquer regulação ou controlo. Como também não se poderia antecipar que viriam a tornar-se empresas gigantescas com capitalizações bolsistas muito maiores que o PIB da maioria dos países do planeta.
O tema é complexo. Por um lado, temos o sonho libertário do meio de comunicação democrático, não hierárquico, livre de todo o tipo de constrangimentos, por outro, temos o mal, o muito mal que essas plataformas podem causar desde a possibilidade de difundir informação falsa, interferir ilegitimamente em processos democráticos, quando não permitir divulgação de ideologias de ódio ou terrorismo puro e duro. Lembrar que as redes sociais foram a base de recrutamento de coisas hediondas como o estado islâmico.
As redes socias reclamam o estatuto de praças públicas e a praça não pode ser responsabilizada pelo que lá se diz ou faz.
Talvez, mas se a praça pode fazer mal (e muito mal) temos de a controlar. O grande problema é que temos de o fazer sem destruir o sonho libertário e daqui resulta um equilíbrio manifestamente complicado.
As soluções não são simples, mas abdicar de evitar (ou tentar evitar) o mal é moralmente insustentável.
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