Volto à minha obsessão com as gigantes tecnológicas.
A Facebook não para de nos surpreender com revelações chocantes. Soubemos agora que a tecnológica terá pago 20 dólares por mês a pessoas entre os 15 e os 35 anos para que estas permitissem a recolha de dados dos seus iphones violando a política de privacidade da Apple.
Uma comissão do parlamento do Reino Unido concluiu que a Facebook deve ser investigada por violação intencional das regras de privacidade. O relatório da comissão recomenda a instituição de um regulador para as redes sociais pago por uma taxa imposta sobre as empresas. No mesmo relatório é feita uma crítica pessoal a Mark Zucherberg verdadeiramente demolidora.
Quanto mais sabemos, mais aterrados ficamos.
O lado positivo de tudo isto é que, aos poucos, os decisores políticos vão percebendo que assobiar para o lado e fingir que não vêm não é opção. Apesar de tudo, como diria Galileu: “e pur si muove” - as autoridades políticas vão, aqui e ali, mostrando vontade de agir.
Já ficou claro que este vai ser um tema central nas primárias democratas para a escolha do adversário de Trump nas eleições presidenciais de 2020. Elizabeth Warren, uma das candidatas que já está no terreno, colocou o tema na agenda da sua campanha e os restantes candidatos (os que já estão na corrida e os que ainda vão aparecer) arriscam demasiado se ignorarem o problema.
Também nos Estados Unidos, o senador Mark Warner diz estar a trabalhar em legislação que vai obrigar as gigantes tecnológicas a publicar o valor económico dos dados que recolhe dos seus utilizadores.
Porventura, se os utilizadores souberem que o valor económico dos seus dados para a rede social duplicou e o nível de serviços é o mesmo, estarão mais propensos a mudar de rede social ou motor de busca.
Isto funcionaria muito bem se houvesse concorrência real. Não havendo concorrência poderemos ter utilizadores furiosos, mas poucos resultados práticos.
Lembro que uma das minhas crónicas anteriores se centrou justamente sobre como poderíamos criar concorrência real aos monopólios atuais das gigantes tecnológicas. Sem concorrência real não há muito que possamos fazer para combater os monstros. Claro que se podem sempre regular os monopólios. O problema é que a experiência histórica nos ensina que, com o tempo, é relativamente fácil o regulado capturar o regulador.
Na Alemanha a autoridade da concorrência levou a cabo uma investigação durante três anos com vista a perceber se a capacidade da Facebook acumular montanhas de dados dos utilizadores pode criar barreiras à concorrência e causar danos a consumidores.
Pode estar na calha, por exemplo, a proibição da Facebook recolher dados a partir serviços de partes terceiras onde é possível interagir com a rede social através de “likes”.
Nesta procura de medidas mitigadoras do risco da concentração de quantidades colossais de dados nas mãos das empresas tecnológicas corre-se o risco de confundir duas dimensões: a questão da garantia de privacidade dos dados pessoais e o tema da concorrência.
A questão da privacidade dos dados já tem uma ampla cobertura legal na Europa (ao contrário dos Estados Unidos) depois da entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD). A multa recentemente aplicada à Google pelo governo francês mostra que não estamos aqui a falar de mera retórica. Ou seja, nesta frente já há progressos reais!
O tema da concorrência é muito mais complexo. Vai predominando nesta matéria o pensamento da escola de Chicago, segundo o qual a concentração de poder de mercado não é particularmente perigosa desde que os preços no consumidor não sejam acrescidos. Se uma empresa de grande dimensão deseja comprar outra de grande dimensão e com isso ganha uma quota de mercado desmesurada pode não ser grande problema desde que a empresa compradora seja, por exemplo, tradicionalmente a que pratica preços mais baixos. A concentração pode não prejudicar os consumidores uma vez que os preços, no limite, até podem baixar.
Contudo, uma nova escola de pensamento está a emergir e a colocar o tema da concorrência com um foco mais amplo. Não chega olhar para os consumidores – é necessário olhar para o conjunto da sociedade e, quando perdemos a vesga perspetiva dos preços no consumidor, a coisa muda de feição.
Os consumidores podem nem ficar pior de um ponto de vista dos preços, podem até nem pagar nada pelos serviços como acontece em redes sociais ou motores de busca, contudo, isso não impede que a comunidade fique pior: podem estar em causa valores superiores ao bem-estar imediato dos consumidores, desde logo a qualidade da democracia.
É, portanto, necessária uma nova visão do tema da concorrência. Essa visão está a ser construída aos poucos e há que reconhecer que o trabalho mais avançado nesta matéria está a ser feito na Europa.
Numa conferência recente na Universidade de Cambridge, Margrethe Vestager, a comissária da concorrência, disse: “… estamos a olhar de perto se empresas usam o seu controlo sobre dados para causar danos à concorrência. Precisamos de saber se as regras (atuais) da concorrência estão adaptadas a um mundo onde os dados se tornaram ainda mais vitais.”
A comissária da concorrência adiantou que a União Europeia criou uma task force de académicos que deverá apresentar as primeiras conclusões em março deste ano.
Não se pense que são só os motores de busca ou as redes sociais que podem cair em breve sob o escrutínio de novas regras de concorrência. A Amazon, por exemplo, sob a aparência de uma inocente retalhista eletrónica, pode estar a criar um monstro capaz de tolher a concorrência.
A Amazon vende produtos de cujo abastecimento e logística se responsabiliza, mas também funciona como plataforma de venda de produtos de terceiros a cujos dados passa a ter acesso. Quem garante que esses dados não são usados para tolher a concorrência?
Ficámos a saber que a autoridade da concorrência alemã já terá lançado uma investigação sobre a Amazon. Tal como no caso da recolha de dados de entidades terceiras pela Facebook, poderemos estar aqui perante uma iniciativa pioneira que pode abrir a porta para um caso maior ao nível de toda a União.
Mas há uma outra frente que pode doer ainda mais às gigantes da tecnologia – a regulamentação dos direitos de autor de conteúdos divulgados no ciberespaço.
Aparentemente os países da União Europeia estarão próximos de um acordo sobre esta matéria que pode mudar profundamente o modelo de negócio de nomes como Google, Facebook, Twitter e quejandos.
Esta ainda vai doer ainda mais, mas fica para uma próxima crónica.
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