MAIO 2019

Cuidadores e propostas legislativas

1.  A proposta "cuidador", à partida, enferma de um significado redutor "ao cuidado", do que são as normais relações familiares e de afeto que devem ser apoiadas, incentivadas e protegidas e não objeto de "classificações", como "principal" e "não principal".
Para além de não explicitarem os critérios necessários para esta descriminação e a forma como eles podem ser aplicados de modo a não cometer injustiças, avaliações erróneas,  que contrariem a própria vontade da pessoa objeto de cuidados,  e até favorecer desinvestimentos familiares nas pessoas fragilizadas, estas classificações, pela hierarquização determinada por terceiros alheios ao conhecimento e valorização efetiva das relações ao longo da vida, afetivas e familiares,  omitem, no conceito, a forma como o cuidado é prestado, valorizando quase exclusivamente a tipologia de cuidados. No limite, essa forma pode ser um veículo de maus-tratos, perpetrado pelo "eleito" "cuidador", que, a coberto de um "estatuto", pode ser a pior escolha. Ao existir esta `nomeação", importante é pois garantir que o "eleito" "cuidador principal" obedece a critérios de avaliação familiar, psicológica, de dependência financeira ou não da pessoa "cuidada", de registo criminal, etc., etc., e que é objeto de um acompanhamento e vigilância da pessoa que recebe cuidados, preventiva de situações de abuso, negligência, maus-tratos e usurpação de bens, entre outras situações.
Sem as Instituições que conhecem as famílias, a vizinhança, os mais diretos conviventes, o meio ambiente no qual se processam os cuidados, as suas convicções religiosas, políticas e até as histórias familiares ao longo da vida, como pensa o Estado, ou como pensam as autarquias, proteger os mais frágeis e indefesos, daqueles a quem confere o "estatuto" ou um conjunto de privilégios, em detrimento das normais relações familiares estabelecidas, limitando essa participação até um certo grau familiar e diferenciando em "principal" e "não principal", pessoas que cuidam, e até remunerando-as, numa total ingerência subjetiva e parcelar de avaliação, na esfera privada e familiar das pessoas?
Sem esta clarificação é socialmente inaceitável instituir este modelo, que altera e subverte as normais relações familiares, transforma as famílias em prestadores "remunerados" em função de terem ou não "estatuto" ou "classificação" e que não diferencia os familiares de quaisquer outros prestadores de serviço doméstico.
É, aliás, neste sentido que vale a pena olhar o que na Europa parece um objetivo, a coberto deste "interesse" em apoiar os "cuidadores informais", que é estabelecer uma confusão total entre famílias e trabalhadores de serviço doméstico, o que só pode vir a fragilizar ainda mais a situação das próprias famílias como tal, e dos mais fracos e vulneráveis doentes, pessoas com deficiência ou com dependência, colocando-os previsivelmente à mercê de situações de ausência de cuidados em casos de "baixa", "greve" ou outra forma de omissão de deveres que possa vir a surgir, como "direito constitucional" dos "cuidadores".

2. Outro aspeto é, reforço, a questão de falar de "cuidador", no singular, e no masculino, quando se pretende:
- envolver o maior número de prestadores de cuidados disponíveis possível e não sobrecarregar "um" ou "dois", anulando eventuais outras ajudas dentro da família;
- valorizar as equipas pluridisciplinares, envolvendo a família e outros mais diretos prestadores de cuidados formais e informais;
- valorizar o papel das mulheres nas suas múltiplas dimensões pessoais e profissionais, sendo que a maioria dos "cuidadores" são mulheres;
- relevar o papel maioritário das famílias nos cuidados, pelo que, ao adotar-se o termo "cuidador", deveria referir sempre "cuidador/a" familiar ou "cuidador/a não familiar", porque tal traduziria de forma mais adequada, a realidade.
- considerar o "doente", no centro do sistema, com vontade própria expressa de diversas formas, como um olhar, um balbuciar, uma expressão ou outras formas de comunicação de agrado, desagrado, concordância ou discordância, e não apenas "objeto" de cuidados, definidos por terceiros, e prestados por terceiros também definidos ou "eleitos" por terceiros.
Como pensa o Estado fazer valer a vontade de quem é cuidado? E esta eleição de "cuidadores" é uma "nova" cultura só para alguns?

3. Porque não estabelece o Estado uma verdadeira política protetora na dependência e na deficiência, universal, com apoio nos diferentes atores sociais, começando nas próprias pessoas vulneráveis e nas famílias, incluindo o Estado, as Autarquias, as IPSS? Porque são as  famílias reduzidas a "cuidadores"? Porque não se apoiam as IPSS para melhorar os serviços de apoio domiciliário, que já fazem, e são tão necessários, e que permitiriam aos familiares continuar a sua vida profissional normal? Porque não aposta o Estado na requalificação das respostas de internamento que ele próprio criou num determinado tempo e quadro social e demográfico e que estão hoje  com necessidades muito diferentes para apoiar nomeadamente os mais idosos mais dependentes, com polipatologia, num quadro de envelhecimento demográfico crescente e de famílias reduzidas, e bem assim as pessoas com deficiência e, em particular, as que sobrevivem aos seus parentes mais próximos?

4. Uma medida "solta" como a que preconiza o apoio a "cuidadores", nestes moldes, não preenche as lacunas graves resultantes de não ter havido nos últimos anos lugar a políticas interministeriais (educação, reabilitação,  saúde, segurança social, trabalho, economia, finanças, planeamento, habitação, segurança, comunicação social, cultura, etc.):
- dirigidas ao envelhecimento populacional e ao envelhecimento individual em geral;
- dirigidas às pessoas com deficiência e com dependência;
- de apoio às famílias que cuidam dos mais novos e dos mais idosos e que precisam ou querem continuar a trabalhar;
- de apoio à natalidade e à valorização da infância;
- para a solidariedade entre as gerações;
- para a possibilidade equitativa de escolha nomeadamente das mulheres entre "cuidar" e "trabalhar", ou na conciliação dos dois processos.

Maria João Quintela (Direção da CNIS)

 

Data de introdução: 2019-05-09



















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