A aprovação na Assembleia da República dos cinco projetos de lei para despenalizar a morte medicamente assistida não é sinónimo de que a eutanásia passa a ser possível em Portugal.Há um longo caminho legislativo, a possibilidade de haver um referendo, a intervenção do Presidente da República e um possível recurso ao Tribunal Constitucional.
Os cinco projetos do BE, PAN, PS, PEV e Iniciativa Liberal, que foram aprovados em plenário da Assembleia da República, vão agora ser debatidos na comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Depois da aprovação, na generalidade, no parlamento, segue-se um longo processo legislativo, uma decisão do Presidente da República, e uma possível intervenção do Tribunal Constitucional.
Para já, os deputados vão negociar um texto comum, na comissão parlamentar que inclui deputados dos partidos que se opuseram à despenalização. Não há datas para esta primeira fase, mas o PS quer concluir o debate na especialidade até julho, altura em que termina a sessão legislativa.
Fora da Assembleia da República há ainda tempo para os opositores à despenalização da eutanásia recolherem as 60 mil assinaturas necessárias para propor no parlamento um referendo nacional sobre a questão.
Quando os deputados chegarem a um texto comum o diploma vai a votação final global que, sendo aprovado, seguirá para Belém à consideração do Presidente das República. Marcelo Rebelo de Sousa pode promulgar, vetar ou enviar a lei para o Tribunal Constitucional. Apesar de ser católico e contra a despenalização da eutanásia, o Chefe do Estado sempre disse que não utilizaria o veto político para fazer valer as suas convicções pessoais e apenas “a análise que fará do estado da situação da sociedade portuguesa” suportará a decisão. O veto, neste caso poderá simplesmente atrasar a aprovação uma vez que caso seja reconfirmada na AR a aprovação do diploma o Presidente tem oito dias para promulgar a lei.
Na terceira hipótese Marcelo Rebelo de Sousa pode apelar ao Tribunal Constitucional. Se o diploma tiver defeitos constitucionais eles podem ainda ser corrigidos no Parlamento, mas se o diploma tiver uma doença constitucional grave pode ser a morte desta lei para despenalizar a morte medicamente assistida.
Por isso, não pode haver, agora, relaxamento cívico, técnico, político, moral e ético. É preciso acompanhar o debate na especialidade e perceber que fusão vai ser feita dos cinco projetos; é preciso prever escrupulosamente a questão, grandemente omissa, da aplicação prática da futura lei; é preciso saber antecipadamente como e quem fiscaliza a aplicação da lei; é preciso assegurar que a lei que garante a antecipação da morte aos cidadãos que a requeiram nas estritas condições clínicas aprovadas é a mesma lei que vai impedir desvarios, leviandades, subjetividades e irresponsabilidades que a transformem num pretexto para aliviar a sociedade de indivíduos “inúteis”, ou a iniciativa de pessoas que queiram aliviar a sociedade da sua presença, ou, pior ainda, se transforme num novo e lucrativo negócio; é preciso garantir que a lei não avança sem que sejam garantidos os cuidados paliativos indispensáveis à dignidade do fim de vida, seja por doença ou velhice.
O QUE É A EUTANÁSIA?
A morte assistida é o ato que leva à morte de um doente por sua vontade, através do ato de um profissional de saúde (eutanásia) ou através de suicídio assistido.
A palavra eutanásia tem origem no grego -- "eu", que significa boa, e "tanathos", que quer dizer "morte", ou seja, "boa morte", remetendo para o ato de tirar a vida a alguém por solicitação, de modo a acabar com o seu sofrimento. O termo, criado pelos filósofos enciclopedistas, surgiu pela primeira vez no século XVIII.
Embora com soluções legais diferentes, em vários países onde é praticada a morte assistida, o sofrimento intolerável do doente e o grau de consciência para tomar essa decisão são condições essenciais para a prática.
O QUE TÊM EM COMUM OS PROJETOS DE LEI DO PS, BE, PAN, PEV E IL?
Traços em comum entre os cinco projetos são a despenalização de quem pratica a morte assistida, nas condições definidas na lei, e a garantia da objeção de consciência para os médicos e enfermeiros.
Todos os diplomas preveem que só podem pedir, através de um médico, a morte medicamente assistida a pessoas maiores de 18 anos, sem problemas ou doenças mentais, em situação de sofrimento "duradouro e insuportável" e com lesão definitiva ou doença incurável e fatal. É também necessário confirmar várias vezes essa vontade.
Os projetos de lei estipulam, embora com algumas diferenças, as condições para um doente pedir para morrer, confirmando, por várias vezes, essa vontade, e mediante pareceres positivos, vários, de médicos. No caso do PS e do BE até cinco vezes, o PEV sugere quatro vezes, o PAN "um número razoável de vezes" e o IL até sete vezes, dependendo se o processo tem ou não a intervenção de um psiquiatra.
O pedido de morte medicamente assistida só pode ser feito pelo próprio, através de um médico, com salvaguardas da avaliação por comissões técnicas, conforme as soluções propostas pelos partidos.
EM QUE CONDIÇÕES PODE UM DOENTE PEDIR A EUTANÁSIA?
Há diferenças nos projetos dos partidos, mas vários são os pontos em comum: o doente tem que ser maior de idade, são necessários vários pareceres médicos, inclusivamente de especialistas da doença de que a pessoa sofre.
No seu projeto, o PAN estipula que "o pedido de morte medicamente assistida apenas é admissível nos casos de doença ou lesão incurável, causadora de sofrimento físico ou psicológico intenso, persistente e não debelado ou atenuado para níveis suportáveis e aceites pelo doente ou nos casos de situação clínica de incapacidade ou dependência absoluta ou definitiva".
O BE refere que o pedido tem de "corresponder a uma vontade livre, séria e esclarecida da pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável".
Já no texto do PS, a condição para pedir a "antecipação da morte" é ser uma "decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal".
O projeto do PEV prevê o recurso à "morte medicamente assistida" em caso de "pedido sério, livre, pessoal, reiterado, instante, expresso, consciente e informado da pessoa" se estiver "em situação de profundo sofrimento decorrente de doença grave, incurável e sem expectável esperança de melhoria clínica", em "estado terminal ou com lesão amplamente incapacitante e definitiva".
O diploma do IL prevê que um doente pode pedir para morrer se padecer "de lesão definitiva ou doença incurável e fatal, esteja em sofrimento duradouro e insuportável". Tem que ser "maior, capaz de entender o sentido e o alcance do pedido e consciente no momento da sua formulação". Não pode pedir a morte assistida quem "seja portador de perturbação psíquica que afete a sua capacidade de tomar decisões".
EM QUE CONDIÇÕES PODE O DOENTE REVOGAR A DECISÃO?
Pode fazê-lo a qualquer momento, de acordo com todos os projetos. E se o doente ficar inconsciente, o processo é parado de imediato.
E QUAIS SÃO AS OUTRAS CONDIÇÕES?
O processo também não avança se um dos pareceres médicos for negativo, havendo, ainda, recurso da decisão para as comissões criadas para avaliar os processos.
Cada partido, porém, tem uma solução diferente.
O PAN propõe uma Comissão de Controlo e Avaliação da Aplicação da Lei, que recebe e analisa os processos de morte medicamente assistida, composta por médicos, juristas e uma personalidade da área da ética ou bioética.
O diploma do BE sugere uma Comissão de Avaliação dos Processos de Antecipação da Morte, a funcionar no âmbito da Assembleia da República, que também decide sobre os processos e rege-se por um regulamento próprio.
O projeto do PS cria a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Antecipação da Morte, com juristas, médicos, enfermeiros e um especialista em bioética indicado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que funciona junto do parlamento.
Já "Os Verdes" têm soluções distintas, propondo comissões por cada área de Administração Regional de Saúde, que faz a avaliação dos pedidos por região, compostas por médicos, enfermeiros, advogados e um magistrado. As decisões têm que ser tomadas por dois terços e não podem existir abstenções.
A proposta do IL prevê uma Comissão de Avaliação dos Procedimentos de Antecipação da Morte, composta por dois juristas, um médico, um enfermeiro e um especialista em bioética.
Todos os partidos propõem que estas comissões façam relatórios regulares sobre a aplicação da lei.
PODEM OS MÉDICOS ALEGAR A OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA?
Sim, todos os projetos preveem essa hipótese. No caso do diploma do PS, essa recusa deve ser fundamentada e comunicada ao doente em prazo "não superior a 24 horas". No caso do projeto da IL, o médico não tem que justificar os motivos da sua objeção.
A Ordem dos Médicos manifestou-se contra a despenalização da eutanásia, argumentando que esta prática viola a ética e a deontologia dos médicos, que "estão preparados para salvar vidas".
A MORTE ASSISTIDA É CRIME EM PORTUGAL?
Em Portugal, a morte assistida não está tipificada como crime com esse nome, mas a sua prática pode ser punida por três artigos do Código Penal: homicídio privilegiado (artigo 133.º), homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º) e crime de incitamento ou auxílio ao suicídio (artigo 135.º).
As penas variam entre um a cinco anos de prisão para o homicídio privilegiado, até três anos para homicídio a pedido da vítima e de dois a oito anos para o crime de incitamento ou auxílio ao suicídio.
É precisamente para despenalizar quem pratica a morte medicamente assistida, em certas condições, que está em debate nos diplomas aprovados.
O QUE É SUICÍDIO ASSISTIDO?
O suicídio assistido é diferente da eutanásia, dado que é o próprio doente, tomando os fármacos letais, a por fim à sua vida, com a colaboração de um terceiro, geralmente um profissional de saúde, que o ajuda a terminar a vida. Também está previsto nos projetos em aprovados.
O QUE É A DISTANÁSIA?
A distanásia define-se como o adiamento, de forma artificial, da morte de um doente que se encontra em fase terminal com o recurso a tratamentos médicos considerados desproporcionados. Também é o utilizado o termo "obstinação terapêutica" como sinónimo de distanásia.
EM QUE PAÍSES PODE SER PRATICADA A EUTANÁSIA?
A eutanásia não é crime em quatro países europeus, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça, mas há mais países do mundo onde é possível a morte assistida ou o suicídio assistido.
Em Espanha, ainda em fevereiro, o parlamento deu início ao processo para legislar sobre a morte medicamente assistida.
Nos Estados Unidos, há cinco Estados onde está regulamentada esta prática: Oregon, desde 1997, Vermont (2013), Califórnia (2015), Washington (2008) e Montana (2009). No Canadá, também é possível a eutanásia desde 2006.
Ainda no continente americano, há mais dois países onde é possível antecipar a morte: Uruguai e Colômbia.
Na Austrália, no Estado de Vitória, já é possível a eutanásia, e na Nova Zelândia vai haver um referendo este ano.
HÁ CASOS DE PORTUGUESES QUE OPTAM PELA EUTANÁSIA NO ESTRANGEIRO?
Sim. Não há números oficiais, mas sim parcelares. Por exemplo, o Jornal de Notícias noticiou que em dez anos, de 2009 a 2019, sete portugueses foram morrer à Suíça, apoiados pela Dignitas, uma associação sem fins lucrativos que "ajuda pessoas a morrer com dignidade". Há mais 20 pessoas com residência em Portugal inscritas na associação.
Em 2019, ainda segundo o JN, a Dignitas ajudou 256 pessoas de várias nacionalidades a pôr fim à vida.
É AINDA POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE UM REFERENDO?
Sim. CDS-PP e vários dirigentes do PSD defenderam uma consulta aos portugueses. Ao contrário do que aconteceu em maio de 2018, desta vez a Igreja Católica defende abertamente a realização de uma consulta popular. Em 11 de fevereiro, o Conselho Permanente da Conferência Episcopal reuniu-se em Fátima e os bispos voltaram a apelar aos profissionais de saúde para não cederem a atos como a eutanásia, o suicídio assistido "ou a supressão da vida", mesmo em casos de doença irreversível.
De acordo com a lei, os referendos podem ser pedidos por grupos parlamentares, pelo Governo ou por grupos de cidadãos. Depois, o Tribunal Constitucional aprecia o pedido e, por fim, a decisão cabe ao Presidente da República.
Não há inqueritos válidos.