1 – Aristóteles ensinava os seus discípulos, lendo e discreteando enquanto passeava com eles ao ar livre no Liceu de Atenas, durante o Século IV antes de Cristo, na chamada Antiguidade Clássica.
Tal procedimento acabou por determinar o nome dado ao método e, por sinédoque, à Escola: a Escola Peripatética, palavra grega que significava “ambulante” – ou “deambulante”.
Esse modelo de - como se diz no jargão do eduquês - ensino/aprendizagem representa uma relação entre o mestre e os seus discípulos marcada pela proximidade e pela cumplicidade, persistindo como hábito virtuoso até aos dias de hoje.
Há cerca de 30 anos, o filme “Clube dos Poetas Mortos”, de grande sucesso comercial, em que um professor suscita o entusiasmo dos alunos, arrastando-os para fora do espaço fechado da Escola, dando vazão e estimulando processos de envolvimento menos convencionais dos mesmos alunos, ou discípulos, representou também, nos tempos mais modernos, um outro exemplo da mesma necessidade de aproximação entre mestre e discípulos, como mecanismo potenciador da aprendizagem e da criatividade.
Em muitos Colégios e Universidades, designadamente em países de tradição anglo-saxónica, existe a figura do tutor – um professor que tem a seu cargo o acompanhamento de um aluno específico no ambiente escolar, ou de um pequeno grupo de alunos, velando pelas condições de sucesso desses mesmos alunos, seja esse sucesso medido sob que bitola for.
Tudo isto para realçar que a relação de proximidade entre mestre e discípulo tem constituído, em múltiplos registos históricos, aquilo a que, na linguagem de hoje, podemos designar de “boas práticas”.
É certo que a massificação do ensino, de forma a garantir aos jovens a universalização da oferta de escola pública, torna particularmente difícil a generalização do método que designamos por peripatético: não há mestres que cheguem para tantos discípulos.
De forma que o sistema de ensino vem reservando, e bem, o modelo tutorial aos jovens alunos que mostrem dificuldades de aprendizagem, de forma a permitir que estes possam acompanhar a passada dos demais.
Mas o que parece legítimo deduzir dos exemplos referidos é que a relação de proximidade com os professores constitui condição de maior sucesso na aprendizagem; e, não menos importante, na vontade de aprender.
Outra manifestação de apreço por essa aproximação entre alunos e professores é a insistência com que os sindicatos representativos dos professores defendem a necessidade de diminuir o número de alunos por turma – de maneira a reforçar a ligação entre ambos.
2 – Em meados da década de 60 do século passado, o início do processo do alargamento da escolaridade, com a criação do então designado Ciclo Preparatório – correspondendo aos actuais 5º e 6º ano do ensino básico -, deve muito à chamada Telescola, que consistia na existência de aulas disciplinares dadas pela Televisão, assim se suprindo a falta de professores, insuficientes para assegurar a cobertura do território no sistema tradicional – presencial -, que o crescimento rápido do número de alunos tornava premente.
A pandemia que nos tem assombrado os dias ao longo dos últimos meses, tendo exigido, por motivos de saúde pública, o encerramento das escolas, veio implicar a reconstituição desse método de ensino, pela Televisão, para a continuidade possível do ano escolar, restaurando as aulas à distância, como nos já longínquos anos 60 do século XX.
Mas tratou-se de um expediente determinado pela natureza excepcional destes tempos de distanciamento, de afastamento entre as pessoas, para dificultar a propagação do vírus.
Não é para ficar como novo modelo para o futuro.
Não digo que seja necessário um professor por cada aluno.
Nem na Grécia de Aristóteles era assim – e os alunos eram poucos…
Mas é precisa a presença física dos alunos para que um professor apreenda aquele “brilhozinho nos olhos” que ilumina o rosto de uma criança quando compreende um conceito novo ou quando acerta num cálculo mais difícil.
Até porque a escola pública tem o condão de constituir o chamado “elevador social”, permitindo aos alunos provenientes de meios mais desfavorecidos a oportunidade para a aquisição de habilitações e competências que lhes garantam a mobilidade para condições de vida futura mais interessantes.
Ora, no contexto do enfraquecimento da densidade das aprendizagens, que necessariamente acompanha o ensino à distância, são, como sempre, os mais favorecidos que ficam a ganhar – já que as respectivas famílias dispõem de recursos para suprir as deficiências resultantes de tal método.
3 – Também no mundo do trabalho a pandemia obrigou a mudar hábitos e procedimentos.
Pela mesma razão de diminuir os contactos sociais e as intersecções pessoais, foi instituído o teletrabalho como modelo alternativo efectivo ao trabalho com presença física nas instalações das empresas ou dos serviços, deixando de ter o carácter meramente residual que anteriormente assumia como modo de prestação do trabalho.
No Sector Social Solidário, o teletrabalho teve – e continua a ter – fraca expressão, marcada que é pela lógica dos cuidados pessoais a maior parte do trabalho desenvolvido nas Instituições de Solidariedade.
Os gestos dos cuidados com as crianças, com as pessoas com deficiência, com os dependentes, com os mais velhos, constituem uma instância de afecto, de envolvimento, de partilha por parte dos cuidadores, sejam formais, sejam informais.
Não cabem no ecrã estreito de um computador ou de um telemóvel.
No período do mais intenso recolhimento no domicílio, no âmbito do combate à pandemia, a exigência da prestação laboral em regime de teletrabalho foi mesmo erigida em direito dos trabalhadores, podendo estes impô-la à entidade empregadora.
Tal intensidade do direito foi entretanto reduzida, por recondução à forma clássica, dependendo da avaliação que a entidade empregadora faça de cada situação concreta que lhe seja apresentada pelo interessado, passando a ter em conta os interesses da empresa como fundamento da decisão.
Mas, no discurso que vamos ouvindo, sobre as mudanças nos hábitos que o rescaldo da Covid-19 trará ao nosso modo de vida, é pacífica a noção de que o teletrabalho veio para ficar a marcar presença efectiva no mundo laboral.
Não sei se tal vai representar uma melhoria da vida dos trabalhadores abrangidos.
É certo que são de saudar todas as mudanças que permitam aliviar o peso e intensidade do tempo de trabalho no escasso tempo que a cada um é atribuído – principalmente quando a remuneração desse factor de produção fica tanto a perder relativamente à remuneração do capital.
E a adopção do teletrabalho parece permitir que cada qual administre com maior liberdade o seu próprio tempo, gerindo com maior flexibilidade outros parâmetros da sua vida.
Em alturas de simplex, ainda em muitos contextos laborais a prestação laboral não anda longe da descrição que Manuel da Fonseca fazia, em 1941 “… O sol andando lá fora/ ... e o vento andando lá fora/rumorejando nas árvores/… e a gente práqui fechados/na penumbra das paredes,/curvados prás secretárias/ fazendo letra bonita,/enchendo impressos, impressos,/livros,livros, folhas soltas,/carimbando, pondo selos,/bocejando, bocejando/bocejando.”
Mas, em muitas situações, teletrabalho é sinónimo de trabalho em horário integral: disponibilidade 24 horas por dia, sem sábados ou domingos, sem descanso compensatório, sem férias ou feriados, sem distinção entre dia e noite.
Tudo dependente de quem dá as ordens ou as instruções de serviço.
Por outro lado, o trabalhador em regime de teletrabalho é, muitas vezes, um trabalhador solitário, fechado sobre a sua aparelhagem tecnológica e confinado a si próprio.
Como Fernando Pessoa disse de si mesmo, “um novelo enrolado para o lado de dentro”.
Falta-lhe a protecção, a imunidade de grupo.
Não tem a solidariedade dos colegas de trabalho, quando a luta aperta; nem tem assegurada uma eficaz representação dos seus interesses por parte das organizações sindicais, pela “invisibilidade” da sua presença: no refeitório, nas instalações da entidade empregadora, nas manifestações de protesto, nas reuniões dos trabalhadores.
4 – É antiga a ambição de equilibrar uma prestação laboral que contribua também para a gratificação e realização pessoal do trabalhador, e que seja justamente remunerada, com a fruição de uma vida como vida inteira, com tempo para os afectos, os prazeres e o descanso – juntos ou em separado.
E que tais afectos voltem a ser manifestados de forma física, pelos sentidos, e não no espaço virtual, sujeitos à devassa dos hackers.
Nem todos pensam que o Velho do Restelo constitua, n’ “Os Lusíadas”, um estereotipo negativo.
Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)
Não há inqueritos válidos.