Como de costume, a política, o comentário no espaço público e a generalidade da comunicação social chegaram tarde ao problema. De repente, todos falam da inflação…
Pela minha parte, enviei para publicação neste espaço, faz agora justamente um ano, uma crónica com o título “quem tem medo da inflação?”.
O que estamos a ver agora já era mais ou menos notório há pelo menos um ano. A guerra na Ucrânia, as sanções económicas, a carestia das matérias primas energéticas e alimentares apenas aceleraram um processo que já vinha dos últimos quatro, cinco trimestres.
Nesta crónica não me vou preocupar com a atualidade ou com as perspetivas futuras do processo inflacionário – sobre isso já há muito quem fale - vou antes ocupar-me de ideias gerais que julgo podem ser úteis para a compreensão do fenómeno.
Tenho com este tema uma preocupação particular. O último surto inflacionista sério ocorreu nos anos 70/80 do século passado e foi controlado ao longo da década de 80. Só as pessoas com idade próxima dos 70 têm a experiência do que foi um ciclo inflacionista autoalimentado e do sofrimento que foi necessário para o controlar.
O que gostaria de aqui deixar claro, sobretudo para os que não têm experiência direta do monstro, é que a inflação, quando se torna endémica, é um mal terrível, um monstro que corrói a coesão social, que prejudica os que têm menos voz e poder e que deve ser combatido pelas políticas públicas.
Podemos definir inflação como uma alta generalizada dos preços.
Assim definida a inflação poderia não ser um mal por aí além. Imaginemos uma situação em que os preços sobem, de uma forma mais ou menos homogénea, digamos 5% e os salários e as pensões sobem igualmente cerca de 5%. Podemos dizer que ficamos todos numa situação de indiferença, o poder aquisitivo é razoavelmente constante e a distribuição social mais ou menos fixa.
Infelizmente os processos inflacionários reais estão longe da versão benigna acima descrita.
Desde logo a subida dos preços até pode ser generalizada, contudo nunca é homogénea. O poder na formação dos preços varia muito com os setores de atividade, com grau de monopolização das indústrias, com os níveis de regulação, etc. Ou seja, logo aqui há ganhadores e perdedores.
Depois é tudo menos garantido que os salários acompanhem a inflação. Em teoria até podíamos pensar num esquema automático, consignado nas leis públicas, de ajustamento dos salários à inflação: em teoria seria um exercício neutro e defendia os trabalhadores.
Não posso garantir que seja uma boa ideia. No ciclo inflacionista dos anos 70 do século passado muitos países optaram por esquemas similares, por exemplo, Itália com a famosa “scala mobile”.
Os resultados foram desastrosos e ainda hoje Itália está a pagar os custos.
O problema é que combater os efeitos injustos da inflação com aumentos de salários (ou pensões) é como tentar apagar um fogo com gasolina. Maiores salários nominais implicam mais custos, que implicam mais preços que, por sua vez, implicam mais salários que, por sua vez, implicam mais…
É fácil ver o ciclo infernal…
Finalmente há um preço especial que temos de ter em conta – a taxa de juro.
Em teoria as taxas de juro nominais sobem quando a inflação sobe. Numa economia saudável as taxas de juro reais, ou seja, as taxas de juro nominais deduzidas da inflação, devem ser ligeiramente positivas.
Quando isso não acontece o dinheiro perde poder aquisitivo. Se tenho hoje mil euros que rendem, digamos 2%, mas os preços sobem 5%, ao fim de um ano a quantidade de bens e serviços que os mil euros podem comprar é menor que o que compram hoje.
Quando o dinheiro perde poder aquisitivo, quando as taxas de juro reais são negativas, tendemos a comprar hoje o que poderíamos comprar amanhã, o que é mais uma acha para a fogueira da inflação.
Igualmente importante é a questão dos balanços.
A inflação é um bónus para quem deve e um encargo para os que emprestam. Se empresto mil euros a um juro de 2%, recebo ao fim de um ano 1020 euros. Contudo, se os preços subiram 5%, precisaria de 1050 para ficar numa situação neutra, nem ganhar nem perder. De alguma forma estive a subsidiar o meu devedor.
Talvez a melhor forma de olharmos para a inflação e compreender as suas dinâmicas, seja como uma questão de poder e da forma como ele se distribui na sociedade, entre estado e privados, entre setores de atividade, empregadores e trabalhadores, entre pensionistas e trabalhadores no ativo, credores e devedores, etc.
A inflação não é inocente, é um processo terrível, justamente porque a distribuição de poder não é homogénea e, por isso, uma vez embebida nos processos sociais, a inflação tende a prejudicar os que têm menos poder.
Exemplos: os trabalhadores no ativo defendem-se melhor que os pensionistas. Os trabalhadores podem reivindicar, podem, no limite, fazer greve, os pensionistas não têm qualquer forma de se defender.
O estado ganha com a inflação porque é, em princípio, o maior devedor. Quem perde? Perdem os detentores de títulos com rendimento fixo, os aforradores que emprestaram ao estado e que vão receber capitais desvalorizados.
Poderíamos multiplicar os exemplos – a inflação deforma o tecido social, perturba a alocação de recursos, prejudica os mais fracos, em suma, é um mal terrível que deve ser combatido por públicas adequadas.
Mas o que são políticas públicas adequadas?
Depende da origem do impulso inflacionista.
Se acreditarmos, guerra na Ucrânia à parte, que o impulso inflacionista veio das deslocações e desfasamentos entre oferta e procura gerados pela pandemia, até poderíamos dizer que o melhor é não fazer nada. À medida que as restrições impostas pela pandemia forem sendo eliminadas, oferta e procura voltarão ao equilíbrio e não passa nada.
Esta foi a tese defendida por muitos economistas e, sobretudo, pelos bancos centrais até há um par de meses.
O argumento, simplificando, corria assim: devido à pandemia as pessoas querem comprar coisas que a economia não consegue produzir em quantidade suficiente (mercadorias físicas, nomeadamente) mas poderia produzir mais de coisas que as pessoas não querem ou não podem comprar (serviços nomeadamente – não podemos ir ao cinema, aos restaurantes, fazer férias em hotéis, temos medo de ir a hospitais, etc.).
Como isto é temporário não devemos preocupar-nos excessivamente – o que o tempo trouxe, o tempo levará!
A este grupo deram o nome de “equipa do transitório”.
Mas sempre houve uma equipa adversária que eu chamei a equipa dos nervosos.
A equipa dos nervosos dizia que até pode ser verdade que o impulso inflacionista vem das deslocações e desfasamentos de oferta e procura gerados pela crise sanitária e até pode ser verdade que ao fim de algum tempo esses fatores desvaneçam.
Só que, mesmo que tudo o que diz a equipa do transitório seja verdade, isso não significa que não estejamos perante um problema sério. Falta introduzir a variável tempo, depende do tempo que o ajustamento levar, depende do impacto nas expetativas, do comportamento dos que têm poder de formação de preços, etc.
O que para já está claro, segundo a evidência empírica disponível, é que a equipa do transitório estava errada.
Não, não estamos perante um impulso temporário que se vai desvanecer com o tempo à medida que os impactos da pandemia forem desaparecendo. O monstro instalou-se, veio para ficar!
E, sendo assim, que fazer? Fica para a próxima crónica.
Não há inqueritos válidos.