1 - O novo ano parlamentar iniciar-se-á com o debate e a consequente aprovação de medidas legislativas relativas à designada “Agenda do Trabalho Digno” – medidas que, no essencial, constam do programa do Governo e que, tendo em conta que o Governo dispõe do apoio da maioria absoluta do Parlamento, é de presumir que venham a constituir a base das alterações legislativas que passarão a vigorar no nosso ordenamento jurídico laboral.
(Podemos, numa reflexão mais vasta sobre os princípios que regem as relações laborais, perguntarmo-nos se a designação da Agenda – “Trabalho Digno” - não será redundante, na medida em que todo o trabalho, em sentido estrito, é portador de dignidade intrínseca, no que constitui uma reafirmação de idêntico princípio formulado pela “Doutrina Social da Igreja”, desde a “Rerum Novarum”.
Na sequência do teor do seu artº 58º, 1 - “Todos têm direito ao trabalho” -, entendeu a Constituição da República Portuguesa definir como um direito fundamental dos cidadãos a afirmação do direito ao trabalho, a escolher e a exercer uma profissão, conferindo uma distinção fundamental entre essa enunciação como um direito de conteúdo positivo, de guarida constitucional, e a previsão do dever de trabalhar, com significado meramente do foro laboral, designadamente na sua vertente disciplinar.
Mas, como em tudo o que é hoje verdadeiramente importante na conformação jurídica da nossa vida colectiva, a Agenda do Trabalho Digno” da proposta do Governo importou a formulação da União Europeia, designadamente a Resolução do Parlamento Europeu, de 23 de maio de 2007, sobre “Promover um trabalho digno para todos”.
De acordo com o legislador de Estrasburgo, o conceito de trabalho digno não se restringe à “protecção das normas laborais fundamentais”, incluindo, ainda, o que se designa por “emprego produtivo e livremente escolhido, direitos no trabalho, protecção social e diálogo social, bem como a integração da perspectiva do género …”
Nessa medida, da afirmação da dignidade intrínseca e da qualificação dos direitos dos trabalhadores, concordo com a formulação da Agenda – não, portanto, na perspectiva da admissão implícita de formas “indignas” de trabalho, mas na constatação de que o quadro jurídico actual já não é capaz de assegurar de forma eficaz os direitos dos trabalhadores e de que, portanto, se torna necessário reformar esse quadro, no sentido de conferir maior dignidade ao exercício desse direito, na sua afirmação constitucional positiva.
É nesse sentido a “Agenda do Trabalho Digno e Valorização dos Jovens no Mercado de Trabalho”, que constitui a base do debate que o Parlamento vai iniciar, elegendo o combate à precariedade, a promoção da contratação coletiva e a melhoria geral dos salários como eixos fundamentais.)
2 – Interessa constatar, no contexto do debate, o estado da arte no que diz respeito ao universo dos trabalhadores que exercem a sua profissão nas Instituições Particulares de Solidariedade Social.
Trata-se de um universo com significado em valores absolutos – mais de 200.000 trabalhadores; mas também relativamente ao relevo qualitativo que a prestação de cuidados, designadamente aos mais vulneráveis, assume numa sociedade envelhecida e com elevados níveis de pobreza, como é o caso da sociedade portuguesa.
Tem sido o Primeiro-Ministro a liderar o discurso político do Governo sobre esta matéria; e, de acordo com o discurso politico do Chefe do Governo, são três os eixos da Agenda que tocam mais expressivamente o estatuto das IPSS, também como geradoras de emprego e de garantia, portanto, do exercício de direitos dos seus trabalhadores: a precariedade do emprego, o reforço da contratação colectiva e a melhoria geral dos salários, mantendo o percurso de valorização do salario mínimo e procurando idêntico processo no que respeita ao salário médio.
Estou de acordo com a importância desses três eixos.
No que especificamente respeita ao reforço da contratação colectiva, não se pode ignorar o sinal de fortíssimo apoio a essa forma de regulação das relações laborais que foi dado pelas Partes outorgantes das Adendas para 2022 do Compromisso de Cooperação para 2021-2022, fazendo depender a aplicabilidade das medidas clausuladas da existência de contratação colectiva activa e dinâmica, para usar a expressão da Cláusula VII da Adenda assinada em 27 de Julho de 2022.
Nessa perspectiva, não se pode deixar de salientar que, no que respeita ao Sector das IPSS, tem sido mantida uma politica de negociação colectiva das relações de trabalho, com periodicidade anual, desde 2007 – mesmo durante o período da troika, em que era recomendada a parcimónia na emissão de portarias de extensão; o que não inibiu a CNIS de requerer a respectiva emissão, em conjunto com as diversas Federações Sindicais outorgantes das convenções, a fim de ampliar a todos os trabalhadores, fossem ou não sindicalizados, as melhorias das condições de trabalho negociadas com tais Federações.
Também quanto à precariedade das relações laborais, o estado da situação se afigura muito favorável aos objectivos da Agenda.
Restrinjo o âmbito do conceito de precariedade das relações laborais à forma de vinculação, como me parece rigoroso; dela excluindo a questão do montante da retribuição, que, sendo também essencial, não tem que ver com a precariedade das relações de trabalho, em sentido próprio, mas com a eventual precariedade das condições de vida dos trabalhadores.
Com efeito, tem sido divulgada publicamente a informação de que cerca de metade dos contratos de trabalho no País são celebrados a termo, certo ou incerto.
Ora, um amplo e representativo inquérito recentemente efectuado permitiu apurar que, durante o período mais agudo da pandemia, 72% dos trabalhadores ao serviço das Instituições do Sector Social e Solidário se encontravam vinculados por contratos de trabalho sem termo; e apenas 14% haviam celebrado contratos a termo.
(Os restantes 14% respeitavam a outras formas de prestação laboral: prestação de serviços, medidas do IEFP, estágios …)
E, para explicar os 14% de contratos a termo, basta pensar nas substituições de trabalhadores ausentes por doença, própria ou de familiares por si assistidos, ou substituição de trabalhadores em confinamento ou em isolamento profiláctico – que, pela própria natureza das substituições, teriam de obedecer às regras da contratação a termo, certo ou incerto.
Em conclusão, pode afirmar-se com segurança e reconhecimento a essencial estabilidade das relações laborais nas IPSS, com rejeição do arbítrio e da incerteza dessas relações.
Tal constatação vem na sequência, como se sabe, quer da cultura de proximidade das Instituições (com utentes, trabalhadores e comunidade), quer da natureza personalizada que caracteriza a prestação de cuidados de bem-estar e de saúde – que exige a estabilidade do cuidador como condição qualitativa para satisfação das necessidades, explicitadas ou não, dos utentes.
3 - Fica a questão da qualificação salarial.
A CNIS vem defendendo, pelo seu Presidente, que os trabalhadores não só não são um problema, como constituem um precioso activo das Instituições.
E, nesse sentido, tem considerado como justa a qualificação salarial dos trabalhadores, designadamente os das carreiras comuns.
A Cláusula VII da Adenda, já referida, e também subscrita pelas Organizações Representativas das Instituições, enuncia o objectivo de “valorizar a qualificação e formação dos trabalhadores e a promoção do trabalho digno” – aqui incluindo, como já vimos, a continuação da progressão do salário mínimo e o aumento do salário médio.
E o Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, pelo seu próprio texto e pelo discurso sobre ele que o Primeiro-Ministro vem proclamando, constitui, entre outros sinais positivos, o reconhecimento do sub-financiamento público do funcionamento das respostas sociais e o compromisso de tornar equitativa a participação da Segurança Social nesse funcionamento.
A Adenda para 2022 ao Compromisso de Cooperação parece cumprir esse desígnio.
Henrique Rodrigues (presidente do Centro Social de Ermesinde)
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