Aqui e ali começam a surgir vozes críticas das medidas anti-inflacionárias do BCE. Sem espanto, muitas dessas manifestações vêm de políticos dos países do sul da europa. Teme-se que uma subida brusca nas taxas de juro ponha em causa os equilíbrios frágeis, seja dos orçamentos das famílias seja a sustentabilidade das dívidas públicas.
O argumento dos críticos é basicamente o seguinte: o atual surto inflacionista nasceu de deslocações e desencontros entre procura e oferta gerados pela pandemia que depois foram potenciados pela crise energética em resultado da agressão russa à Ucrânia.
Não se vê em que é que subir as taxas de juro permita aumentar a oferta dos bens que ficaram curtos com a pandemia (automóveis, por exemplo) ou fazer circular mais gás russo para a Europa.
É rigorosamente verdade que taxas de juro mais altas não levam as fábricas a produzir mais nem comovem os russos para enviar mais gás.
Mas trata-se de uma falácia. O argumento seria válido se acreditássemos numa de duas coisas: a) – o surto é transitório, cura-se a si mesmo, é uma questão de tempo; b) - existem meios menos danosos que uma política monetária restritiva para resolver o tema.
A primeira solução foi aquela em que quiseram acreditar os bancos centrais e deu no que deu, em relação à segunda seria bom que os críticos se chegassem à frente e nos iluminassem quanto a um caminho melhor para controlar a inflação.
Neste espaço de crónica tenho sido muito crítico do comportamento dos bancos centrais. Reagiram tarde, comunicaram mal, equivocaram-se completamente em relação à natureza supostamente transitória do surto inflacionista. Andaram a dormir na forma e agora correm atrás do prejuízo…
Contudo, por mais que nos custe, estão a cumprir o seu dever usando os instrumentos ao seu dispor para conter a alta dos preços.
Esta dissonância entre uma política monetária conduzida de forma independente pelos bancos centrais e os desejos de alguns políticos pode agravar-se no futuro próximo, à medida em que for ficando claro que o pico da inflação foi ultrapassado.
Parece ser o caso nos Estados Unidos. De facto, o índice de preços no consumidor americano (CPI) está a cair há quatro meses consecutivos. Em outubro o CPI registou 7,7% contra um máximo em junho de 9,1%.
Na Europa os números preliminares de novembro saíram em 10% contra 10,6% em outubro. Podemos também na Europa ter já atingido o pico e ter iniciado uma trajetória descendente.
Eventualmente estes números podem baixar a pressão dos bancos centrais para subir taxas de juro em passo de corrida. O mais provável é que as próximas subidas nas taxas de referência sejam de 0,5% em vez dos 0,75% registados nos movimentos anteriores.
Contudo, não devemos (a começar pelos responsáveis políticos) tomar os nossos desejos por realidades.
Mesmo que se confirme que a inflação já atingiu o seu pico e vai agora percorrer uma trajetória descendente, os bancos centrais vão continuar a subir as taxas de juro e a reduzir o tamanho dos balanços. Não devem, não podem fazer outra coisa.
Desde logo não podemos olhar apenas para o número geral da inflação. Temos de descer um pouco ao detalhe e ver qual é o comportamento dos preços excluindo os setores mais voláteis, nomeadamente a energia e a comida. Chamemos a esse indicador a inflação nuclear.
Os preços da energia e da comida sobem e descem por vezes de forma abrupta e em períodos curtos, a inflação nuclear é mais estável e diz-nos mais sobre as tendências de fundo.
Ora, na Europa, embora o índice agregado tenha descido, a inflação nuclear subiu em novembro. Não há nenhum mistério – bastou que a inflação da energia descesse um pouco em novembro para que o número global também descesse. Contudo, o facto de a inflação nuclear estar a subir diz-nos que estamos longe de ter o monstro controlado e que o dito cujo vai dar luta para ser derrotado.
Depois não é garantido que a inflação agregada não possa ressurgir. Basta para tal que os preços da energia voltem a subir de forma significativa. Esse cenário não é impossível. Não sabemos quais os efeitos do inverno, nomeadamente se o mesmo vier rigoroso. Também não sabemos as consequências no mercado do petróleo da aplicação dos preços máximos para o petróleo russo. Entre outras coisas não é possível antecipar como vai reagir a Rússia. Ainda podemos ter uma surpresa desagradável nesta frente.
Finalmente está criada uma dupla dinâmica (salários e lucros) que está a alimentar a fogueira inflacionista.
A sabedoria convencional diz-nos que a inflação é uma dinâmica de salários-preços. Se os salários sobem as empresas têm de subir os preços para proteger as margens, o que leva a novas subidas de salários, o que leva a novas subidas de preços num ciclo autoalimentado que pode ficar fora de controlo.
Não é o que está a acontecer neste ciclo inflacionista, pelo menos para já.
Na economia americana os salários nominais estavam a crescer 4,7 % em outubro de 2022, ou seja, pouco mais de metade da inflação. Na zona euro a progressão dos salários é ainda mais curta, próxima de 4%.
O que estamos a ver neste ciclo inflacionista é que as empresas têm aumentado os preços bem acima do que seria necessário para repor as margens, ou seja, estamos com uma inflação induzida por alargamento dos lucros em tandem com de uma dinâmica de salários nominais (mais fraca). As margens dos retalhistas também estão em máximos e são mais uma acha na fogueira inflacionista.
Provavelmente, a razão desta capacidade das empresas para subir preços de forma agressiva tem que ver com o facto de existir na economia um raro lastro de poupanças privadas excecionais que foram geradas pela pandemia. Durante a pandemia o fechamento da economia obrigou a poupanças involuntárias – não podíamos ir a restaurantes, discotecas ou viajar, por exemplo. A combinação das poupanças forçadas com apoios sociais fortes nesse período fizeram disparar as taxas de poupança privada.
Em Portugal as taxas de poupança privada dispararam em 2020 e 2021 o que levou a um crescimento quase harmónico dos depósitos bancários de particulares. O mesmo aconteceu em muitas geografias em que os apoios durante a pandemia foram fortes, como é o caso dos Estados Unidos.
Esse lastro está a alimentar uma procura que é inflacionista uma vez que permite às empresas subir anormalmente as margens de lucro.
Só há uma forma de reequilibrar o poder de formação de preços de que as empresas estão a usar e abusar – reduzir a procura.
Poderão sempre dizer os críticos dos bancos centrais que poderíamos esperar o esgotamento das poupanças excecionais para reequilibrar oferta e procura em vez de aplicar uma política monetária agressiva. Talvez assim nos poupássemos a uma quase certa recessão económica.
Voltamos ao pensamento mágico e à conversa do transitório.
Não devemos, não podemos correr o risco de deixar a inflação embeber-se no tecido económico e social. Os custos da inação ou da ação pífia são demasiado elevados pelo que, por mais que nos custe, vamos ter de viver com taxas de juro mais altas, com balanços dos bancos centrais mais curtos e com as desagradáveis consequências que todos conhecemos.
Não há inqueritos válidos.