JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Mundo dos ativos digitais não augura nada de bom

O mundo dos cripto-ativos ganhou um novo impulso com a eleição de Donald Trump.

Não só os empresários do setor financiaram generosamente a campanha eleitoral de Donald Trump, como, o próprio, lançou uma cripto-moeda, a Trumpcoin cuja última cotação rondava ultimamente os oito dólares o que dá ao projeto uma capitalização bolsista de 1,6 biliões de dólares.

Quanto à bitcoin, o mais antigo dos cripto-ativos, está a cotar próximo dos 100.000 dólares o que equivale a quase dobrar de valor no último ano.

A proliferação bem como a febre especulativa em torno do mundo do cripto é para este vosso criado um mistério.

Na verdade, não se conhece nenhuma utilidade social aos cripto-ativos.

Pode-se dizer que, no limite, podem servir como dinheiro.

Em rigor, nem isso.

As bitcoins não são escaláveis, são um desastre ambiental pela energia absurda que consomem na sua criação e, por outro lado, das três funções do dinheiro (unidade de conta, meio de troca e reserva de valor) só a última fica razoavelmente preenchida e, ainda assim, à custa de um enorme risco e volatilidade. O indicador beta das bitcoins é de 2,6. Um beta igual a 1 significa que o ativo se comporta como o geral do mercado, sobre quando o mercado sobe e desce quando o mercado desce e sensivelmente na mesa proporção do mercado. Um beta de 2,6 significa que quando o mercado geral sobe a bitcoin sobe muito mais, mas, quando o mercado desce a bitcoin desce muito mais.

Há quem tente comparar com o ouro, os cripto-ativos seriam uma espécie de ouro digital.

A comparação com o ouro não faz sentido. A esmagadora maioria do ouro produzido no mundo é consumida no fabrico de joalharia e em outras aplicações industriais.

Na verdade, a bitcoin, que começou como um projeto libertário, ou seja, a criação de dinheiro digital, que circula numa comunidade de pares sem que o seu curso seja forçado pelo poder do Estado e, como tal, ao abrigo das maldades que por vezes os Estados fazem ao dinheiro comum - por exemplo, permitindo inflação em excesso e a consequente a erosão do valor do dinheiro legal – é hoje um instrumento de eleição de criminosos, traficantes, promotores do terror e quejandos.

Talvez que a evolução mais significativa neste setor dos cripto-ativos seja a sua tendencial normalização, ou seja, a sua entrada no que poderíamos chamar o mundo da finança convencional, tudo isto debaixo do alto patrocínio da atual administração americana.

Entre as novidades consta que o JPMorgan, o maior banco do mundo, estará aberto a emprestar dinheiro contra cripto-ativos. As grandes gestoras de ativos, como a Black Rock – a maior de todas - estarão a criar produtos que permitam aos clientes criar exposição a ativos como bitcoins e outros ativos do mundo cripto.

Mas talvez que o maior desenvolvimento ocorrido até agora tenha sido a aprovação pelo congresso americano da genius act (que raio de nome para uma lei) de legislação que regula uma das facetas do mundo cripto, a saber, as chamadas stablecoins, que, numa tradução literal para português, daria qualquer coisa como moedas estáveis.

As stablecoins são dinheiro digital criado por empresas privadas e é suposto que a emissão do dinheiro digital é suportada por ativos altamente seguros e líquidos como títulos de tesouro, aplicações no mercado de liquidez ou operações de repo nas quais alguém vende um ativo como a obrigação de o recomprar mais à frente.

Curiosamente a genius act foi aprovada pela generalidade dos republicamos, mas também por muitos democratas o que diz bem do poder de lobby do mundo cripto.

Basicamente o que lei diz é que as stablecoins podem ser usadas para pagamentos, são remíveis em dinheiro legal a uma taxa fixa, o montante total em circulação tem corresponder na proporção de 1:1 a ativos seguros na posse do emissor e, finalmente, fica claro que as stablecloins não são títulos negociáveis, depósitos bancários ou uma mercadoria.

De alguma forma a lei pretende estabelecer uma fronteira entre a parte mais respeitável dos cripto-ativos e os produtos mais especulativos como sejam, por exemplo, as bitcoins. Para esses está prometida legislação mais à frente.

Embora a legislação tenha o mérito aparente de tornar as stablecoins mais seguras, obrigando nomeadamente à detenção de um conjunto de ativos líquidos e seguros por parte dos emissores, a verdade é que existem riscos consideráveis.

A dimensão atual das emissões de stablecoins não assusta – andará pelos 200 biliões de dólares.

Contudo, com o novo estatuto legal e com o ambiente favorável aos cripto-ativos que é uma das imagens de marca da atual administração, não é impossível que o volume se multiplique por dez em relativamente pouco tempo.

Scott Bessent, o atual secretário do tesouro, vê nesse crescimento um fator claramente positivo – obrigará os emissores a comprar muitos títulos do tesouro americano o que, tudo o mais igual, fará subir os seus preços que é o mesmo que dizer baixar as taxas de juro.

Talvez! O problema é que, se a dimensão do mercado das moedas estáveis se tornar mesmo grande e ocorrer uma qualquer crise de confiança no setor, a corrida à conversão em dinheiro normal vai obrigar os emissores a fazer, em pouco tempo, vendas maciças de títulos do tesouro e outros ativos e o secretário do tesouro pode enfrentar exatamente o contrário do que desejava.

Também se coloca um tema de oportunidade. Sabemos, por experiência histórica, que os tempos de grande incerteza em matéria política e económica, como manifestamente são aqueles em que vivemos, não são o melhor momento para embarcar em grandes inovações financeiras.

Se o efeito das tarifas sobre as importações for mesmo inflacionário, como em princípio é, podemos um dia destes estar confrontados com a necessidade de subir as taxas de juro o que, em condições normais, vai implicar uma queda no valor dos ativos financeiros.

Como vimos em cima, em momentos desses, os cripto-ativos podem perder bem mais que os ativos comuns. Para a dimensão atual isso pode não ser um problema grave, com dimensões significativamente maiores, a coisa pode ser séria.

Em suma, os cripto-ativos não correspondem a nenhuma função social relevante, passaríamos muito bem sem eles, no entanto, se a sua dimensão explodir e, para isso não lhes falta apoio da atual administração, podem vir a ser, além de socialmente inúteis, a causa de uma crise financeira de dimensões que não conseguimos antever.

O genius act não foi uma ideia genial.

 

Data de introdução: 2025-08-07



















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