O “Público” do passado dia 26 de Dezembro trazia em destaque nas páginas nobres – páginas 2 e 3 – uma série de peças sobre uma menina de 4 anos que está no centro de um debate judicial relativo à sua custódia.
Os factos, em resumo, e tendo como fonte o que o jornal publica, são os seguintes:
a) Em 12 de Fevereiro de 2002, na Sertã, nasceu uma menina fruto de um relacionamento ocasional;
b) 3 meses depois, a mãe entregou-a para adopção a um casal sem filhos, tendo assinado uma declaração de consentimento para adopção plena em favor do referido casal;
c) O pai foi dado como sendo incógnito – presume-se que por ocasião da inscrição no registo.
d) O Ministério Público instaurou, como é seu dever, uma acção oficiosa para investigação da paternidade
e) Este processo terá terminado em Fevereiro de 2003, tendo no seu decurso o pai da menor prestado toda a colaboração e realizado os necessários testes para determinação da paternidade;
f) O mesmo processo confirmou a paternidade da menor, tendo na sequência o identificado pai contactado a mãe “para assumir as suas responsabilidades de parentesco”, para citar textualmente o jornal;
g) Esta não lhe forneceu nenhuma informação quanto ao paradeiro da menor, tendo o pai recorrido aos serviços do Ministério Público, a fim de lhe ser atribuído o exercício do poder paternal;
h) Foi aqui informado de que a sua filha fora entregue, para adopção, a um casal;
i) Desde então – Fevereiro de 2003 – até hoje, o pai nunca conseguiu ver a criança, já que, quer a mãe, quer o casal de acolhimento, sempre o impediram;
j) Não houve nenhuma sentença a decretar a adopção;
l) Pelo contrário, na sequência do pedido do pai para lhe ser atribuído o exercício do poder paternal, o tribunal decidiu retirar a criança do casal de acolhimento e entregá-la ao seu pai por sentença de 13 de Julho de 2004;
m) O casal de acolhimento persiste na recusa da entrega da criança ao pai, não obstante a intimação judicial para o fazer.
2 – Todos estes factos constam, disseminados, pelo conjunto das peças jornalísticas que tratam o assunto.
O alinhamento que o jornal deles faz é que é totalmente diverso do meu.
O jornal, de acordo com o ar do tempo, releva o convívio da menor com o casal de acolhimento, titulando a grosso: “O que poderá a criança fazer a 93 por cento da sua vida? Branqueá-la como se fosse um registo civil”.
Ainda no mesmo registo, o que a jornalista autora da reportagem apresenta como particularmente chocante é o facto de o Tribunal de Torres Novas ter ordenado a prisão preventiva do “pai” de acolhimento, pela persistente recusa da entrega da criança ao seu pai, ordenada pelo tribunal há dois anos e meio, invocando o Tribunal o perigo de fuga como fundamento da prisão preventiva.
A forma, aliás, como as peças foram editadas pelo jornal significa que a redacção acompanha os interesses que a sua jornalista considerou relevantes.
3 – São naturalmente interesses relevantes.
É, com efeito, perturbador que alguém que durante quatro anos e meio criou uma criança como filha a veja ser-lhe retirada pelo Tribunal.
Mesmo se, como é o caso – embora a jornalista não tenha relevado este aspecto – a criança lhe foi entregue, em transacção directa, pela mãe, fora do quadro institucional em que a entrega de menores se processa.
À margem da lei, portanto.
E sendo também certo que, desses quatro anos e meio, pelo menos três e meio terem passado sabendo que o pai queria a criança para a sua guarda desde que soube que era o pai, e que nenhuma responsabilidade tivera na sua entrega.
Como são relevantes os interesses da criança que vive na verdade há quatro anos e meio numa família estável, como se fosse sua filha – e que será evidentemente sujeita a um profundo embate com a mudança.
Mas são-no também os do pai da criança – de quem o jornal passou ao lado.
O Tribunal, porém, não passou ao largo, anotando, na decisão da entrega da menina ao seu pai, que “ se em termos económicos é o referido casal que oferece melhores condições à menor, não se questionando também que o mesmo possua um enorme afecto por esta, tratando-a como se sua filha fosse, a verdade é que os seus pais biológicos são outros. E desejam assumir o exercício dos seus poderes e deveres parentais. Por outras palavras – prossegue o juiz – cabe perguntar se o vínculo biológico pode pesar na decisão de atribuição da guarda. Ainda de outra forma, se a menor tem o direito a viver com o seu pai, possuindo este as condições indispensáveis para lhe proporcionar um desenvolvimento saudável (ainda que materialmente inferiores às de terceiras pessoas).”
“E, salvo melhor entendimento, a resposta deve ser afirmativa. Tem de ser assegurada à menor o direito a ser criada e educada pelos seus pais biológicos.”
Parece óbvio, não é verdade? Mas teve de ser o Tribunal a dizê-lo, e ao arrepio do discurso dominante e politicamente correcto.
4 – Como em tudo na vida, decidir é comparar interesses divergentes, definindo entre eles uma hierarquia.
Os meus leitores já perceberam que não me revejo na hierarquização feita pelo “Público”, preferindo-lhe a que o Tribunal fez prevalecer.
Mas creio que todos estaremos de acordo que é eticamente intolerável confiscar uma filha a um pai que nunca a abandonou, maltratou ou negligenciou; que requereu o exercício do poder paternal mal soube que era o pai; que não larga os tribunais desde há quatro anos para, primeiro, conseguir localizar a filha, e, depois, a reaver.
Tratando-se, aliás, de um confisco para sempre, já que o registo civil seria “branqueado”, para utilizar a infeliz metáfora da jornalista.
Ora, uma lei que permite que situações como a descrita se verifiquem é uma lei iníqua, e que não serve.
O defeito não está, como tantas vezes a imprensa diz ou insinua, nos Técnicos da Segurança Social, ou nos mecanismos judiciais.
O defeito está lá atrás, muito antes da intervenção dessas instâncias.
O defeito está na lei.
5 – É bom que os mesmos factos – os mesmíssimos factos - provoquem em nós leituras e enfoques tão diferentes como os que nesta crónica ficaram assinalados.
“Os meus olhos são uns olhos/ E é com estes olhos meus/ Que eu vejo no mundo escolhos/ Onde outros, com outros olhos/ Não vêem escolhos nenhuns”, como escreveu António Gedeão (“Onde Sancho vê moinhos/ D. Quixote vê gigantes”).
A liberdade é também essa forma de olharmos o mundo de modos diversos, e de exprimir esse olhar (mesmo que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social pretenda instituir mecanismos censórios nos órgãos da imprensa, como há pouco sucedeu com o mesmo jornal “Público” cujos critérios editoriais hoje aqui questiono – mas cuja diferença em relação aos meus respeito).
A figura do D. Quixote, das lutas solitárias e inglórias, nem está mal para fecho desta crónica, onde se trata da dificuldade de afrontar o discurso dominante.
Mas, na verdade, 400 anos depois de Cervantes, entre D. Quixote e Sancho Pança, creio que ninguém hesitará na escolha.
É com esta esperança numa contínua melhoria da condição dos homens que encerro as crónicas deste ano de 2006.
Não há inqueritos válidos.