Já por várias vezes Ferreira Torres disse acreditar na justiça divina quando está a braços com a justiça terrena. Uma das últimas sessões do julgamento do antigo presidente da Câmara de Marco de Canaveses foi disso exemplo. A meio da tarde, com os apaniguados a encheram a sala de audiências e o colectivo de juízes retirados para decidir sobre um requerimento, o ex-autarca socorreu-se frequentemente da expressão “por amor de Deus” para reverberar uma indignação de circunstância de que vos vou dar conta.
O diligente funcionário judicial, ciente do poder que a placa do Ministério da Justiça pendurada na lapela do casaco lhe dá, não disfarçou o sotaque autoritário da Régua quando pediu o Bilhete de Identidade de uma senhora da assistência, suspeitando que a criatura pudesse ser testemunha do processo. Como uma mola, Ferreira Torres levantou-se do banco dos réus, despiu a condição de arguido - acusado de corrupção, extorsão, abuso de poder, peculato de uso - e armou-se em advogado de defesa da pobre suspeita. De mãos nos quadris, arredondando ainda mais a protuberante barriga, rubor nas faces, olhar nervoso e inquieto, o funcionário resistia, com silêncio, à metralha verbal do arguido armado em causídico:
- Era o que faltava. Um reles funcionário judicial a pedir o Bilhete de Identidade e a senhora passou-lho para a mão? Não pode. Por amor de Deus… mas onde é que estamos? Este senhor não manda nada. O tribunal é de todos. A lei proíbe. Ninguém pode ficar com o Bilhete de Identidade de ninguém.
A voz de Ferreira Torres preenchia todos os espaços da ampla sala de audiências. E subia de tom. Berrava contra o embatucado funcionário. Esbracejava e enristava o dedo indicador. A assistência sorria conivente. Os jornalistas viravam as costas ao episódio caricato num espaço solene da justiça terrena.
- Eu defendo os humildes – proclamava o arguido – e não admito que os tratem desta maneira. Isto não é a república das bananas.
O ex-autarca deambulava agitado no espaço destinado aos que respondem por crimes enquanto espezinhava o funcionário. De repente, encarou a injustiçada:
- Ele ficou-lhe com o BI? Ficou, então levante-se e vá apresentar queixa. Você é testemunha? Você também? E você viu? Vá já apresentar queixa do funcionário, por amor de Deus!
Os dedos na assistência cresciam como mimosas no calor das palavras, oferecendo-se para testemunhas. A senhora levantou-se. Eu vou senhor presidente, convencia-se enquanto se dirigia para saída à procura dos agentes da GNR, já de ouvido na discussão a solo. Tenha calma senhor presidente, estamos no tribunal, diziam os guardas enquanto se preparavam para ouvirem o relato do sucedido.
Imperceptível, aparentemente desligada da confusão, uma sombra de velhinha soergueu-se a meio da turba assistente, de olhar vidrado na indignação de Ferreira Torres. E ficou especada. Torres vociferava:
- É isto a justiça portuguesa. Ainda pensam que estamos no tempo da PIDE ou quê? Aqui ninguém tem medo. Como é que podemos confiar na justiça? Como? É por isso que eu só confio numa justiça. Na justiça de Deus.
A velhinha-estátua esperou uma pausa naquela arenga ameaçadora. Apanhou a primeira interrupção e numa voz melíflua mas segura captou a atenção dos presentes e o olhar do indignado:
- Oh senhor presidente. Já que fala tanto em Deus e como estamos no mês de Maio e de Maria que é que acha, senhor presidente, de rezarmos o tercinho enquanto esperamos…
Na pia mão da idosa apareceu quase por milagre um terço a comprovar que falava a sério. O riso surgiu como um coro colectivo e espontâneo. A máscara de justiceiro de Ferreira Torres desfez-se em cacos no chão:
- Oh caramba… Eu sou católico mas tanto também não.
Data de introdução: 2008-06-04