APPDA-NORTE

Mundos de Silêncio

“O David não olhava para mim… O David teve anos em que nunca me deu um beijo… Eu é que pegava nele, mas ele não gostava que lhe tocasse. Foi tão difícil não saber como lidar com ele! Queria agarrá-lo, beijá-lo e eu era indiferente para ele. Naquela altura falava-se pouco ou nada de autismo. Quando cheguei a Portugal era tudo muito complicado e eu senti-me perdida. Consegui que uma professora do ensino especial se interessasse pelo caso. Ela disse-me que não podia aceitar o David porque tinha um comportamento muito estranho que não sabia lidar com ele. Eu pensava que o meu filho era único. Nunca tinha visto outro caso”.
É com lágrimas nos olhos que Ana Gonçalves recorda a infância do filho, agora com 37 anos. Autista severo, foi a dificuldade de um diagnóstico preciso e a sensação de isolamento que mais lhe custou nos primeiros anos de vida de David. A família regressava de Angola, mas um filho diferente levou-os a viajar pelo mundo à procura de respostas. “Na África do Sul disseram-me que o meu filho era autista, mas eu, na altura, nem compreendia o que isso era”, recorda a mãe, actual vice-presidente da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo/Norte (APPDA/Norte).

Uma doença misteriosa para a qual a ciência continua à procura da cura. Em Portugal, não se sabe sequer quantos são, mas extrapolando as estatísticas internacionais, o número poderá rondar os 65 mil.
O Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos da América actualizou a prevalência e estima que uma em cada 150 crianças nasça com uma perturbação do espectro de autismo o que representa um aumento de cerca de 600 por cento em três décadas. O aperfeiçoamento no diagnóstico pode ajudar a compreender este aumento exponencial, mas os especialistas são incapazes de explicar totalmente o fenómeno. Enquanto se espera pela descoberta de marcadores biológicos específicos, o autismo é definido puramente em termos de padrões comportamentais. Mais de 60 anos após as primeiras descrições da doença (1943, Leo Kanner e 1944, Hans Asperger), o autismo é considerado uma das mais graves perturbações de desenvolvimento da criança, de que resulta, na grande maioria dos casos, numa incapacidade que se prolonga por toda a vida.

Pode ter uma grande variedade de expressões clínicas e embora a causa, ou as múltiplas causas, não sejam ainda conhecidas, sabe-se hoje que existe uma base biológica e que o autismo resulta de uma disfunção no desenvolvimento do sistema nervoso central e que factores genéticos têm um peso importante. Genericamente designado por autismo são várias as perturbações do espectro autista que, em comum, têm as dificuldades na comunicação e na interacção social e os padrões de comportamento repetitivos ou ritualísticos. Mas o grau de afectação nas várias áreas é muito diverso. Há autistas com grave défice cognitivo que não têm qualquer grau de autonomia e há outros que, à excepção de um ou outro traço considerado mais excêntrico, são perfeitamente funcionais.

A APPDA - Norte

Ana Maria (Vice-Presidente)“Em 1981, tinha o meu filho 10 anos, tive conhecimento de que havia uma associação de autismo em Portugal, em Lisboa. Fui até lá com o David e após ver o trabalho que eles desenvolviam, em 1982, eu, juntamente com outros pais e amigos lançámo-nos na tarefa da criação de uma delegação em Vila Nova de Gaia”, explica Ana Gonçalves. A autarquia local cedeu o terreno onde foi construído um pavilhão pré-fabricado e dois anos depois, em 1984, entrou em funcionamento o Centro de Dia do Monte da Virgem que, na altura, apoiava uma dezena de crianças.

A instituição foi crescendo e criou outras valências. Em 1996, começou a construção de um edifício de raiz, onde hoje estão instalados um centro de actividades ocupacionais (CAO), com capacidade para 30 utentes, e um lar-residência para 20 pessoas. A instituição desenvolve ainda uma terceira valência, o centro de estudos e apoio à criança e família (CEACF) que se ocupa do diagnóstico e intervenção nas áreas da pedopsiquiatria, psicologia educacional, ocupacional e comunicação, bem como no apoio às famílias e na realização de acções de formação sobre a matéria. “É uma valência que dispõe de uma equipa multidisciplinar que foi consequência de projectos desenvolvidos a partir de 1996, no âmbito do Programa Ser Criança e que abriram a APPDA para o contacto e parceria com instituições na área da Saúde, da Educação e da Segurança Social”, explica Paula Pinto Freitas, coordenadora técnica da associação e pedopsiquiatra da infância e adolescência.
Foi no âmbito do CEACF que foi realizado o primeiro levantamento na Região Norte das crianças com perturbação do espectro de autismo. “De algum modo, esta nossa iniciativa, e muito especialmente a melhoria dos cuidados de saúde pediátricos, com o implemento dos serviços/consultas de pediatria do desenvolvimento, foi criando melhores condições para que nos últimos anos venha sendo realizado um despiste mais precoce desta doença”, explica a especialista.

Com meia centena de utentes e meia centena de trabalhadores a instituição, que tem vindo a aperfeiçoar-se no diagnóstico cada vez mais precoce, depara-se com a necessidade de criar serviços cada vez mais especializados. “Existindo uma maior diversidade de situações diagnosticadas torna-se necessário equacionar uma maior diversidade de valências/serviços de atendimento”, explica a coordenadora. “Serviços pensados em função da faixa etária da criança apoiada, mas também das características, potencialidades e do nível de autonomia que esperamos que ela venha a atingir na vida adulta”.

O trabalho diário desenvolve-se em muitas vertentes, desde os mais pequenos até aos adultos. Júlio Santos é professor de música na APPDA desde a fundação e consegue encontrar muitas melhorias no comportamento de inúmeros meninos que ajudou a crescer. “É óptimo trabalhar com eles há tantos anos. Fomos partilhando o mundo deles, aqueles bocadinhos, aqueles pequeninos toques de realidade que são importantes para a relação”, diz. As actividades diárias incluem tecelagem, olaria, culinária, actividades da vida quotidiana, música, pintura. Não faltam também acções para a promoção do bem-estar físico, sempre realizadas num contexto abrangente de aprendizagem. “As coisas vão sendo trabalhadas aos poucos e de forma contínua e hoje, por exemplo, eles são capazes de estar em espaços públicos sem perturbar a comunidade, isso é uma grande vitória”. As idas ao café, ao cinema, aos hipermercados ou à praia são actividades importantes de socialização realizadas com regularidade. “Eles gostam de sair e isso para nós é uma grande satisfação”, diz o professor.

Helena Vidal, a trabalhar na instituição também desde os seus primórdios, vê igualmente com carinho o crescimento dos “seus meninos” e quando se pergunta se sente que “curou” alguém, a psicóloga responde que a “cura” são os pequenos actos que se transformam e aperfeiçoam. “Quando me aproximo de determinado jovem que parece não ser investido por ninguém, consigo ainda ir para casa pensar nele, no sorriso que me deu, na melhor estratégia para que faça algo e sobretudo tentar irradiar ao pequeno grupo, essa visão de qualquer um deles tem muita coisa para dar. Só assim se pode continuar a trabalhar ao fim de 20 anos, vencer a frustração de, na realidade, não ter “curado” ninguém”.

A instituição dispõe de quatro residências com capacidade para apoiar cinco utentes cada uma. Na entrada dos jovens é dada prioridade a situações com dificuldades sócio-económicas, ruptura familiar ou inexistência de retaguarda. “O ambiente que pretendemos ter nas residências é o mais familiar possível, pois alguns jovens estão connosco permanentemente”, afirma Ana Gonçalves. A vice-presidente fala também, em relação ao futuro, na necessidade de pensar em adaptar ou construir residências com cuidados de saúde intermédios, “pois os nossos jovens também estão a envelhecer”.

Como projectos a médio-longo prazo, a APPDA está empenhada nas negociações com a Câmara de Vila Nova de Gaia para o apoio à construção de um edifício para alargamento das actuais valências. A criação de um Grupo de Autonomia e Socialização em Contexto é outra das metas propostas, tendo sido já realizada uma experiência, em 2006 que, segundo a vice-presidente, suporta a validade dessa proposta. “Tínhamos como objectivo promover e desenvolver competências sociais e relacionais de modo a que as crianças e jovens adquirissem gradualmente autonomia e independência nas actividades do quotidiano, o que veio a verificar-se de forma muito positiva”, explica Ana Gonçalves. A experiência foi implementada ao longo de dois anos, dando apoio a um grupo de seis crianças com idades compreendidas entre os sete e os doze anos e que, em simultâneo, frequentavam o ensino regular com apoios educativos.

Quem nasce autista, morre autista, mas isso não significa que não haja nada a fazer. O tratamento adequado pode fazer a diferença entre uma vida de dependência ou de relativa funcionalidade. E pode fazer uma grande diferença para as famílias que têm de cuidar destes doentes. Por exemplo, no último ano lectivo, no nosso país, foram apoiados 500 alunos com perturbações do espectro do autismo, em 93 unidades de ensino estruturado com 187 docentes de ensino especial, de acordo com o Ministério da Educação. Embora a tendência seja para integrar mais crianças nessas unidades, a verdade é que muitos continuam sem apoio. Entre os cerca de 60 utentes da APPDA-Norte, nenhum frequenta essas estruturas.

 

Data de introdução: 2008-08-15



















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