CENTRO COMUNITÁRIO DE SÃO CIRILO, PORTO

Capacitar nacionais e estrangeiros que tudo perderam

No coração do Porto surgiu em 2010 o Centro Comunitário de São Cirilo, uma comunidade de inserção criada pelos jesuítas e que acolhe e (re)capacita pessoas e famílias estrangeiras e nacionais a passar alguma fase temporária de fragilidade social. Neste objeto integram-se pessoas despejadas das suas casas, sem-abrigo que querem sair da rua e encontrar trabalho, estrangeiros que perdem o emprego e sem retaguarda familiar de suporte e todos aqueles que de alguma forma perderam o chão, mas pretendem reconquistá-lo.
“O sonho desta casa nasceu em 2005, sobretudo ligado à comunidade dos Jesuítas, onde muita gente, entre 2001 e 2004, quando havia uma grande comunidade de imigrantes, sobretudo ucranianos, lá ia bater à porta. Era gente que não falava Português, não tinha emprego e não tinha retaguarda de apoio. Este Centro nasce da ideia de criar uma estrutura que permitisse receber e capacitar essas pessoas. Quase como que uma estação de serviço que assistisse essas pessoas para que depois pudessem seguir viagem”, conta o padre jesuíta Filipe Martins, que preside à instituição.
Inicialmente, a ideia era apoiar imigrantes económicos que estivessem a passar dificuldades, mas ainda antes da abertura de portas, a 4 de janeiro de 2010, o propósito foi alterado, pois com o advento da crise económica que assolou o País em 2008, levantou-se uma questão: Criar uma instituição só para imigrantes ou também para cidadãos nacionais?
“Percebeu-se logo que seria também para nacionais e houve até uma alteração de estatutos. E quando olhamos para os números, hoje na casa temos metade de estrangeiros e outra de nacionais”.
“Uma das coisas engraçadas na casa é a mistura muito harmoniosa entre nacionais e estrangeiros. Não creio que haja dificuldades nesse aspeto, até em termos de sentimentos racistas, é tudo muito harmonioso”, congratula-se o padre Filipe Martins.
É grande a diversidade de pessoas que procuram o Centro Comunitário, mas todas elas têm pontos em comum, como aponta Paula Ferreira, diretora-técnica da instituição: “As pessoas nacionais que nos procuram são gente de muito baixos rendimentos, isoladas e mais do sexo masculino. Muitos migrantes de outras zonas do País, que perderam o emprego e cuja situação familiar ficou comprometida. Quando nos procuram é já numa fase muito aflitiva, quando já não têm emprego, nem casa, já não têm nada. O nosso papel é evitar que essas pessoas vão parar à rua. Não somos uma instituição que apoia sem-abrigo, no sentido mais estrito, mas auxiliamos pessoas que estão numa fase muito difícil das suas vidas e que querem voltar a reinserir-se na sociedade”.
Já os imigrantes são gente que perdeu o emprego e não tem forma de sobreviver e de sair dessa situação sem ajuda.
“O nosso público estrangeiro é, essencialmente, formado por imigrantes económicos, alguns recém-chegados, mas a maioria gente que já cá está há algum tempo e que perdeu o emprego. Estas pessoas têm um drama adicional quando perdem o emprego, é que ficam sem contrato de trabalho e na altura de renovar a autorização de residência não tem condições para o fazer. Este risco de ter que abandonar o País é um drama para eles”, refere a técnica.
Neste apoio à comunidade, a instituição, como explica o padre Filipe Martins, está estruturada em cinco serviços.
“Assim, temos o alojamento até 18 camas (masculino, feminino e também familiar), temos as pessoas apoiadas em refeição, só ao almoço, sete dias por semana, com uma capacidade para 20 refeições, e ainda temos as famílias apoiadas em cabaz semanal, sobretudo com produtos oferecidos pelas lojas Pingo Doce, com as quais temos uma parceria muito forte”, revela o responsável pela instituição desde 2012, acrescentando: “Estes três serviços integram-se em algo mais vasto a que chamamos Projeto de Vida. Isto não se prende só com a metáfora do peixe e da cana de pesca, mas vai mais além, porque estas pessoas, juntamente com os técnicos, desenham e comprometem-se com um percurso de recapacitação, com formação, procura de emprego, resolução de questões de dívidas ou legais se existirem. E, por isso, é que não somos um centro de acolhimento de emergência. No fundo, estamos na fase anterior, ou seja, antes das pessoas caírem na rua, ou na fase de recapacitação, ou seja, trabalhando com pessoas já minimamente restruturadas e prontas para seguir viagem. O Projeto de Vida aqui é muito importante. Estes são os serviços a que chamamos os três públicos”.
A estes três serviços acrescem mais dois: “São dois serviços que chegam a famílias de alguns bairros complicados da cidade, que aqui vêm buscar o cabaz, que são sempre acompanhados pelo gabinete de emprego e que vão participando nas formações. As pessoas quando entram comprometem-se a isso. Para acompanhar estas pessoas temos quatro gabinetes multidisciplinares (Educação Social, Jurídico, Psicologia e Emprego). Finalmente, temos o serviço de proximidade, que já é de emergência, como duche para sem-abrigo, lavandaria e banco de roupa”.
Em termos de números, no âmbito dos três grupos de gente alojada, gente de refeição e das famílias apoiadas, a média de frequência é de 106 pessoas/mês. Por outro lado, em Outubro último houve 120 pessoas a recorrem aos gabinetes multidisciplinares.
A todo este universo de pessoas que é apoiada pela instituição, juntam-se as pessoas que frequentam as aulas de Português, de Inglês e de Informática.
No que toca ao tempo de duração do apoio, a instituição está, com a anuência da Segurança Social, a alterá-lo.
“Nos nossos regulamentos e nos acordos que temos está previsto que sejam seis meses, mas já nos apercebemos que é apenas uma meta que não corresponde à realidade, porque há diversas dimensões na vida das pessoas que precisam de ser trabalhadas e o que estipulamos sempre é que será um ano para nacionais e, eventualmente, 18 meses para estrangeiros. O que estava acordado era ser seis meses para nacionais e um ano para estrangeiros, por causa da questão da língua. No entanto, estes prazos podem ser dilatados após avaliação técnica, porque ninguém vai embora desde que vá cumprido com os objetivos e não se consiga autonomizar”, explica Paula Ferreira, acrescentando: “Pelo trabalho que temos desenvolvido ao longo destes cinco anos temos feito algumas avaliações e concluímos que é muito difícil uma pessoa, com imensas fragilidades, conseguir autonomizar-se em seis meses. Mesmo 12 meses era um bocadinho utópico, daí que vamos ajustando e a própria Segurança Social acha que faz sentido”.
Mas também aqui as situações podem variar, como refere o presidente da instituição: “Há gente que está aqui há dois, três anos, mas se essa pessoa é proactiva, não a podemos pôr na rua. À pessoa cabe procurar emprego, não lhe cabe encontrar emprego, por exemplo. Em sentido contrário, há gente que pensamos que o processo vai ser longo e rapidamente se resolve e também nesse aspeto temos tido experiências variadas”.
Já quanto a taxas de sucesso, “a perceção quantitativa é que em 2014 conseguimos 40 empregos, o que é bom, e cerca de três quartos de autonomizações com sucesso”, revela o padre Filipe Martins, ao que Paula Ferreira acrescenta: “As mulheres contam muito para a taxa de sucesso, porque, normalmente, autonomizam-se mais rapidamente através dos serviços domésticos. Mesmo para os homens este ano de 2015 também correu muito bem”.
Neste particular, a instituição tem algumas parcerias que contribuem para estes números, sendo que o padre Filipe Martins destaca uma caraterística interessante: “As pessoas que saem daqui sentem que devem ser nossos embaixadores, daí quererem cumprir bem o trabalho para abrir as portas a outras pessoas que aqui estão. Por outro lado, a avaliação qualitativa também é boa, porque as pessoas estão contentes”.
Tipificando os públicos que procuram o Centro Comunitário de São Cirilo, Paula Ferreira indica que, “em termos de nacionais, são mais homens e de estrangeiros, sobretudo, pessoas isoladas”. No entanto, a instituição tem capacidade, também, para albergar uma família, no chamado quarto familiar, que “está ocupado por uma família do Quirguistão, composta por duas irmãs, a mãe e duas crianças”.
Em cinco anos de atividade, a instituição já acolheu 4600 pessoas de 95 nacionalidades, sendo 2.595 estrangeiras e 1.985 nacionais.
“Temos gente de diversos países de Leste, como Ucrânia, Rússia, Letónia ou Polónia, mas também do Nepal, China e Índia, entre muitas outras. É uma panóplia muito grande, alguns só para as aulas de Português e em que a maioria acaba por ser de África e do Leste da Europa”.
Já em termos de habilitações literárias também há um pouco de tudo, como médicos, engenheiros, gente que terminou o mestrado e analfabetos. “Em termos de imigrantes o leque é vasto, já em termos dos nacionais é mesmo de escolaridade baixa”, sublinha Paula Ferreira.
Com um acordo atípico com a Segurança Social e sem poder contar com comparticipações dos utentes, a situação financeira da instituição é semelhante ao andar no fio da navalha.
“Esta casa vive mal… Temos um acordo atípico com a Segurança Social e essa relação tem sido muito boa. O valor não é suficiente para os nossos gastos e se só vivêssemos disso a casa fechava as portas num instante”, explica o presidente, acrescentando: “Tivemos algum financiamento do Alto Comissariado para as Migrações e estamos à espera do Portugal 2020 para apresentar algumas candidaturas. Depois, temos dois tipos de donativos, um a nível «pro bono», desde os seguros à alimentação do Pingo Doce e ainda de uma empresa que nos fornece os produtos de limpeza, o que é uma grande ajuda, porque evita despesas. E há ainda gente que nos dá donativos ocasionalmente. Estamos, neste momento, a tentar fazer crescer o número do que chamamos os Amigos. A ideia não é que sejam dadores líquidos, mas gente que se identifica com esta causa da capacitação e que nos ajuda a crescer. E as pessoas têm aderido. Em termos financeiros temo-nos mantido à tona de água. O banco com que trabalhamos tem feito um esforço grande a nível dos financiamentos, mas diria que estamos na linha de água. Ainda temos uma dívida de construção para saldar e tem sido o que tem desequilibrado as contas. Por outro lado, a consignação fiscal tem sido também uma grande ajuda, porque depois de explicarmos o que fazemos, muita gente nos tem contemplado com essa benesse”.
Como projetos, o Centro São Cirilo pretende apresentar candidaturas ao Portugal2020 no âmbito da formação nas áreas em que há mais empregabilidade, como serviços domésticos ou de empregados de mesa.
“Equacionámos lançar um negócio social, mas chegámos à conclusão que este, se calhar, não é o momento. Seja porque o negócio social parece uma coisa mais bonita do que é a nível da rentabilidade, seja porque também estamos a estabilizar uma série de coisas na instituição e a implementar instrumentos novos de avaliação. Gostávamos muito de avançar com estas formações certificadas e de crescer nesta relação com a rede social e com os parceiros empresariais ou individuais. Gostaríamos de crescer para podermos também alargar a base das pessoas que apoiamos. O sonho é poder continuar a acompanhar bem estas pessoas que nos procuram, poder crescer na formação e na angariação de financiamentos. Não queremos crescer com grandes coisas, mas sustentadamente, e poder continuar acompanhar bem. Mais do que projetar grandes sonhos, queremos poder colmatar pequenas faltas aos nossos utentes, que nas suas vidas têm grande importância”, sustenta o padre Filipe Martins, rematando: “Para além da formação com os voluntários, os utentes têm ainda uma formação transversal, que é sempre com pessoal da equipa técnica, a nível de relações humanas, objetivos pessoais, deveres de cidadania, ou apoios sociais. No fundo, não procuramos apenas a capacitação técnica, mas também a capacitação humana”.
Com um corpo de 12 funcionários, a instituição assenta muito da sua ação no trabalho voluntário. De momento são cerca de 60, que se dividem pela recolha de produtos alimentares e pelas ações de formação.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2016-01-21



















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