OPINIÃO DE MARIA JOÃO QUINTELA

Contra a eutanásia

Múltiplas entidades vêm promovendo, desde há vários anos, a formação para profissionais de saúde que lidam com as matérias ligadas ao envelhecimento, abrangendo múltiplos profissionais, voluntários, instituições e outras pessoas que lidam com pessoas idosas e que se interessam pelo Envelhecimento humano.
Tem vindo a ser chamada a atenção para a necessidade de uma evolução cultural face ao envelhecimento populacional, para a divulgação de boas práticas no quadro global da gestão integrada, humanizada e de proximidade nos cuidados e apoio à população mais idosa e lembrando que as doenças crónicas não são uma consequência inevitável do envelhecimento, mas podem em grande parte ser prevenidas ou retardadas, pelas nossas atitudes diárias e pela sociedade na forma como trata os seus mais velhos. O apoio assegurado pela comunidade, globalmente e em tempo útil, no local onde é preciso, pode ser decisivo na vontade e na capacidade das famílias para continuarem a ocupar-se dos seus parentes idosos.
Considera-se absolutamente indispensável que a abordagem sobre o processo de envelhecimento tenha em conta a sua diversidade, entre homens e mulheres e entre pessoas com a mesma idade, tendo em conta os múltiplos determinantes que influenciam o processo de envelhecimento.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas , em 10 de dezembro 1948,  refere que “o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade …” e que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos,  são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.  Diz ainda que “Todo o ser humano tem direito à vida, à liberdade e a segurança pessoal”.
E embora a mesma Declaração também expresse que “todo o ser humano tem direito ao trabalho, sem qualquer distinção, e tem direito a igual remuneração por igual trabalho, ainda hoje os reformados têm visto ao longo dos tempos, a liberdade de receber remuneração pelo seu trabalho, regulada pelas mais diversas e injustas legislações, com as implicações desta situação na saúde e na qualidade de vida destes cidadãos.
Não vemos inseridos nos conteúdos formativos ao longo da vida, de um modo geral, nada que nos ensine sobre o envelhecimento, a lidar com a doença prolongada ou com a fragilidade e a deficiência e a combater estereótipos negativos ligados à idade ou a situações de défice cognitivo, por exemplo.
Ainda temos muito trabalho a fazer para conseguir que, com a idade, com a reforma, com a doença, com a discriminação pela idade, com a insegurança social e financeira, os seres humanos mais idosos tenham uma participação social estimulante que vá para além dos jogos de cartas nos jardins, do isolamento num quarto, ou da  inatividade permanente num cadeirão.
Os progressos no campo da saúde e os avanços na medicina e na tecnologia médica contribuem para uma vida cada vez mais prolongada e esse fenómeno é de tal forma surpreendente que ainda não sabemos o que fazer e como lidar devidamente com o ganho em anos de vida já conquistados, e que continuamos a ganhar. Chega a parecer um “incómodo” estar-se vivo, “um peso”, teimar em não morrer, uma” afronta”, não aceitar pacificamente ser despojado de tudo, abandonado num qualquer hospital, sobretudo por quem espera livrar-se do “encargo” ou aceder à herança.
A divisão da vida entre a juventude em que estudamos para ser alguém, a idade adulta em que trabalhamos porque temos de ser os melhores e para sobreviver num mundo cada vez mais agressivo, imprevisível, competitivo e em que “não há tempo”,  em que crescem os fenómenos de solidão e de violência em todas as idades, e por último a fase da reforma, já não são suficientes para abarcar uma longevidade conquistada.
A  chamada fase da reforma, ainda apelidada de “inactiva”, ou fase dependente da ainda chamada “pensão de  velhice”, não tem sido suficientemente acompanhada  de programas para a educação para a solidariedade entre as gerações e para o respeito e compreensão com a fragilidade, pelo que é urgente uma reflexão profunda e uma mudança cultural e de mentalidades, que não podem ser abreviadas ou esquecidas por qualquer lei que, interferindo com o direito à vida, se esqueça que muitos direitos humanos estão por cumprir e que a falta deles determina muito da nossa vontade e de apego a este mundo.
São pois múltiplos os determinantes da saúde, do envelhecimento, da incapacidade e da autonomia e independência de cada um, ao longo da vida, na saúde e na doença, na felicidade e no sofrimento, na esperança e no desespero. E mesmo que todas as condições fossem iguais, ainda temos que contar com quem encontramos no caminho, com quem nos presta cuidados e com os princípios e normas vigentes, cuja variabilidade determina uma ainda maior dependência das circunstâncias e das vontades do momento. Essa variabilidade,  nem sempre atenta às responsabilidades sociais com as pessoas, mas mais aferida às vitórias pessoais ou coletivas de imposição mais ou menos velada de um padrão de sociedade cada vez mais “selfie”, pode fazer a diferença entre ser considerada “pessoa”( como diria Simone de Beauvoir) e ser considerado um “peso” ou um “fardo”.
É de não esquecer os princípios da beneficência e da não maleficência que se referem à dupla obrigação dos profissionais de saúde para procurar maximizar o benefício potencial e limitar tanto quanto possível quaisquer danos físicos, psicológicos ou outros que possam surgir de uma intervenção médica, e minimizar os riscos.
Quantas vezes no âmbito da saúde, a nossa privacidade e dignidade são violadas, meramente por questões de gestão do escasso tempo para cuidar, de insuficiência de recursos humanos, de desigualdades sociais e de insuficiente humildade profissional? Quantas vezes violamos em saúde, o primado do doente “no centro do sistema” e a observância de um tratamento que seja proporcional, mas com o dever de aliviar o sofrimento e de prestar apoio?
Ao reflectir e pesquisar sobre esta questão, não foi possível encontrar nos sites do Ministério da Saúde, e da Direção Geral da Saúde, ou outros, antecedentes de orientações, normas ou reflexões aprofundadas na matéria, o que significa que não pensamos ainda o suficiente, à medida que vamos  ficando vivos mais tempo, na vida humana, como um valor e um ganho, e, assustados com o envelhecimento, olhamos erradamente para a sobrevivência como um “custo”, uma doença , um “problema”.
Não olhamos tanto para o “benefício global”, mas sobretudo para a resolução do caso concreto, como se o ser humano não merecesse um olhar de integridade e pudesse ser dividido apenas por órgãos, capacidades, competências físicas ou cognitivas individuais, forçando o ser humano mesmo incapacitado a adaptar-se ao ambiente,  sem tornar o ambiente capacitante e devidamente adaptável ao ser humano.   
Não se trata pois de optar pela “obstinação terapêutica” mas de criar as condições para ter sempre, manter e aperfeiçoar a capacidade de lidar com a vida do outro, sem o medo e a rejeição de uma imagem que pode ser a nossa um dia, e portanto, criar competências para acompanhar e lidar com a vida até ao fim, numa relação de humanidade e de confiança inerentes a um acto competente de cuidar, que o profissional tem hoje possibilidade de aprender, mas que o comum dos mortais, na sua grande maioria, ao longo da vida, não aprendeu.
Aliviar ou prevenir a dor, o desconforto, a depressão, a angústia, entre muitas outras situações, faz parte do lema “quando não há nada a fazer, há muito para fazer”, de Cicely Saunders, que dedicou a sua vida ao alívio do sofrimento humano, numa abordagem integral de controlo de sintomas, alívio da dor e do sofrimento psicológico, pioneira dos cuidados paliativos.
A II Assembleia Mundial sobre Envelhecimento evidenciou o conceito de “sociedade para todas as idades”, tema principal do Plano de Acção Internacional de Madrid para o Envelhecimento , de 2002, e definiu três eixos prioritários:  pessoas idosas e desenvolvimento, promoção da saúde e bem-estar das pessoas idosas, e assegurar um ambiente propício e favorável. O envelhecimento foi pois reconhecido, há já 18 anos, uma questão para além da segurança social, devendo antes ser visto no contexto mais geral das políticas de desenvolvimento e económicas, pelo que se evidenciou a necessidade de promover uma abordagem positiva do envelhecimento e de superar os estereótipos negativos que lhe estão associados. Esta Assembleia chamou a atenção para o envelhecimento humano e demográfico, visto à luz dos direitos humanos e liberdades fundamentais, de solidariedade intergeracional e  do conceito de envelhecimento activo, reconhecendo que as pessoas, à medida que envelhecem, devem ter oportunidades de promoção de estilos de vida saudáveis, realização pessoal, de segurança e de participar activamente na vida económica, social, cultural e política e de protecção do direito de continuarem a trabalhar, se assim o desejarem.
Esta Assembleia reconheceu que “As potencialidades das pessoas idosas são uma base sólida de desenvolvimento futuro” , e que a sociedade deve contar cada vez mais com as competências, experiência e sabedoria dos mais velhos e combater a sua exclusão e discriminação.
Será necessário dedicar mais recursos às pessoas idosas, à medida que as despesas com a saúde aumentem, para prevenir o risco de pobreza dos doentes e dos seus mais diretos prestadores de cuidados, que ainda são maioritariamente as famílias, e nestas, as mulheres, que necessitam de continuidade de cuidados de proximidade, para poderem continuar a ter vida própria, a trabalhar e a cuidar dos seus mais velhos.
Sem a eutanásia as pessoas poderão conseguir viver e manter o direito a receber cuidados com compaixão, humanidade e paciência.
Temos vindo a percorrer um longo caminho para a continuidade de cuidados, a prioridade ao apoio de proximidade e na comunidade, o combate à indiferença e ao mau trato.   Os fenómenos crescentes de violência, abandono, abuso, negligência e maus-tratos, sobre as pessoas idosas e de todas as idades, apelam a uma urgente reflexão em matérias de justiça e de legislação dirigidas aos prestadores de cuidados formais e informais que cuidam das pessoas idosas.
Os temas designados para celebrar o Dia Internacional das Pessoas Idosas, dia 1 de outubro, nos últimos anos, têm sido dedicados à celebração dos mais idosos que, em todo o mundo, lutaram e dedicaram a sua vida à defesa dos Direitos Humanos, à igualdade em todas as idades, à não discriminação, à inclusão e à valorização dos mais velhos.
De acordo com a ONU, “os mais idosos lutadores pelos Direitos Humanos, em 2018, nasceram próximo da data da adopção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, sendo tão diversos como as sociedades em que vivem”.
As alternativas à institucionalização têm que se tornar uma realidade acessível, e o abandono das pessoas, quando já não podem elas próprias bastar-se a si próprias, não pode ser “aceite” como uma inevitabilidade. É oportunista e perverso o argumento de que não constitui crime o abandono de pessoas nos hospitais, porque são locais onde lhes são prestados cuidados. Num País que está longe de ter todos os serviços suficientes de proximidade e de apoio domiciliário, mas que discute a eutanásia, torna-se importante reflectir sobre a qualidade dos serviços necessários à população mais envelhecida, doente ou com dependência.
A Organização Mundial da Saúde, no seu Relatório de 2015 sobre Envelhecimento, deixou quatro recomendações fundamentais:
·       Mudança de mentalidades face ao envelhecimento e às pessoas idosas
·       Ambientes favoráveis e estimulantes para todas as idades
·       Adequação dos sistemas de saúde às necessidades das pessoas idosas
·       Desenvolvimento de sistemas de cuidados de acompanhamento de longa duração
A rede nacional de cuidados continuados integrados é uma resposta importante numa sociedade em que a população vive cada vez mais tempo. Esta rede pretende responder a vários níveis de dependência, subjacentes a diversos níveis de necessidade de cuidados. Naturalmente que cada vez mais nos deparamos com a necessidade de aprofundar os cuidados de proximidade na comunidade e de apoio domiciliário, na medida em que, associada ao aumento da esperança média de vida surge cada vez mais, o desejo do indivíduo se manter na sua casa o mais tempo possível.
É necessário refletir sobre a forma como asseguramos os direitos e deveres de quem é cuidado e de quem presta cuidados, sem transformar a questão numa situação que obscureça os cuidados e apoio generosos das famílias, vizinhos e voluntários. Por natureza, se pudesse, o ser-humano cuidaria dos pais, tal como cuida dos filhos. Neste contexto temos que perceber de que forma a sociedade atual hoje tem ou não tempo para se dedicar aos filhos, para que um dia mais tarde estes percebam que é importante também cuidar dos pais.
A vida é um bem único que deve ser preservado em qualquer idade, durante o tempo que for preciso e que tivermos para viver. Aprofundar o conhecimento nestas matérias implica também aprofundar o conhecimento relativamente às ciências da ética, do direito e do dever para o respeito pela vida humana.
Estas matérias são pluridisciplinares e interdisciplinares e cada vez mais deviam ser objeto de políticas intersectoriais e integradas que fizessem intervir a educação e formação ao longo da vida. Não saber o que fazer aos seres humanos não faz sentido.
A “eutanásia é a morte intencionalmente provocada, no contexto de um problema de saúde. Não é mais do que tirar a vida, seja qual for a razão e a idade” e o “suicídio farmacologicamente assistido, por médico ou qualquer outra pessoa, sob qualquer argumento, mesmo o de aliviar sofrimento, é igualmente tirar a vida”, e “uma violação grave e inaceitável da Ética Médica, conforme se pode ler em documentos nacionais e internacionais sobre esta matéria, e “é ingénuo pensar que o suicídio assistido não levará a abusos”  .
“Recentemente, um homem saudável e deprimido que foi aposentado, mas sozinho e solitário, morreu por eutanásia na Holanda. Na Bélgica, uma mulher deprimida e saudável morreu de eutanásia depois de rompimento de um relacionamento de muito tempo. Na Suíça, um homem morreu por suicídio assistido depois de receber um diagnóstico errado.
Dar aos médicos o direito de causar a morte aos seus pacientes nunca será seguro e nenhuma quantidade de “salvaguardas” irá proteger aqueles que vivem com depressão ou vítimas de abuso.
O suicídio assistido cria caminhos de abuso para idosos, pessoas com deficiências e outras pessoas fragilizadas na saúde e socialmente.
A depressão é comum em pessoas com determinadas condições de saúde. O suicídio assistido é um abandono de pessoas que convivem com depressão, problemas psiquiátricos, pessoas com demência, adolescentes que precisam de apoio e cuidados adequados.”
“Nos raros países em que a eutanásia está legalizada, por exemplo, na Bélgica, a eutanásia já está a ser feita a pessoas que não são doentes terminais, mas que vivem com depressão; a eutanásia foi estendida a crianças, e estudos comprovaram que a eutanásia é frequentemente feita a pessoas sem solicitação , como pessoas com doença de Alzheimer e outras Demência ou situações de coma.
Na Suíça, os grupos de morte assistida estabeleceram-se em lares de idosos”.
“Legalizar a eutanásia não cria maiores direitos para as pessoas com deficiência e idosos frágeis, mas muitas vezes leva à morte de pessoas vulneráveis.”
Elizabeth Kübler-Ross  constatou a falta de investigação e informação sobre o tema da morte e experiência de morrer e, no seu  livro “Death and Dying” publicado em 1969, conhecimentos dos seus trabalhos em busca de alguma compreensão básica e percepção da experiência psicológica e emocional da proximidade da morte, e que ela dividiu em cinco estadios negação, revolta, negociação, depressão e aceitação,  que podem variar de pessoa para pessoa,  não têm uma progressão linear e previsível e correspondem a um processo de luto.
É necessário continuar a estudar e compreender os múltiplos aspectos que interferem e que decorrem de ter a sorte de estar vivo, para perceber que a interrupção intencional do ciclo natural de vida em qualquer idade, e em particular em situações de grande vulnerabilidade e dependência, à luz da Constituição Portuguesa, dos Direitos Humanos e da nossa consciência solidária, é inaceitável.
Por estas e tantas outras razões de que se destaca a defesa da dignidade e segurança de todos os cidadãos, em todas as fases da vida, é de repudiar e condenar todas as formas de eutanásia e suicídio assistido ou quaisquer práticas que provoquem ou antecipem a morte.

Maria João Quintela (membro da Direção da CNIS)
Lisboa, 18 de fevereiro de 2020

 

Data de introdução: 2020-02-20



















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