D.MANUEL CLEMENTE, BISPO DO PORTO

É preciso saber o que é ser cristão

SOLIDARIEDADE – Encontrou o que esperava na Diocese do Porto?
D. MANUEL CLEMENTE
– No aspecto social surpreendeu-me pela positiva, quer quantitativa quer qualitativamente. Sabia que era muito forte a presença dos católicos do Porto nas instituições do sector social, mas não sabia que era tanta. Com algumas realidades próprias do Porto, a começar pela Obra Diocesana de Promoção Social. Ver uma instituição como é esta, da Igreja, em ligação com a Câmara Municipal, estar presente, naquilo que há quarenta anos eram os bairros mais problemáticos e que hoje ainda mantém muitos problemas sociais, para uma acção constante de variadíssimas valências, desde o apoio às crianças, aos idosos, até à assistência domiciliária, envolvendo quase quinhentas pessoas num trabalho diário, isto é uma coisa pouco comum noutras dioceses do país. A quantidade e a qualidade da acção das Conferências de S. Vicente de Paulo, quer masculinas quer femininas, envolvendo milhares de pessoas em acção semanal; a parte da acção sócio-caritativa das paróquias, que atinge dimensões como em Alfena, que é uma autêntica cidade-social; além disso, as instituições específicas que têm ligação à Igreja, as Misericórdias, as Irmandades que têm hospitais e lares. Eu não esperava que fosse assim. Tanta e tão grande qualidade.

A ligação entre as instituições de solidariedade e a Igreja é uma tradição. Julga que nos tempos que correm é uma ligação profícua?
Há coisas que são históricas. Até ao século XIX tudo quanto era instituição social encontrava-se no âmbito da caridade cristã. Numa sociedade como a nossa, mais secular, em que se entende que essas funções basicamente são da própria sociedade, crente ou não crente, porque têm a ver com a solidariedade humana, com a filantropia, já não é tão premente, tão total, a presença da Igreja nas instituições da sociedade. Há uma questão essencial: o cristianismo em si mesmo, tem necessariamente uma dimensão social. Seja dessa forma institucional, a que esteve ligada num tempo histórico em que não havia outra, seja noutras épocas em que a mesma sociedade, numa base de filantropia, também atende a essas questões. A Igreja onde estiver, de forma mais ou menos institucionalizada, terá sempre uma dimensão social. Faz parte da dimensão cristã, pela própria dedicação e comportamento de Jesus Cristo que sempre atendeu às necessidades das pessoas, mas ainda pelos relatos que temos da Igreja nos seus primórdios e num meio e império pagãos. As primeiras indicações já têm que ver com coisas de caridade. O primeiro ministério que se criou depois dos apóstolos foi o dos diáconos, cujo nome significa o serviço das mesas. As necessidades imediatas das pessoas.

Há, no entanto, quem defenda que os párocos se envolvem demasiado nas organizações sociais desempenhado papéis burocráticos e administrativos e menos de evangelização.
Não é necessário nem desejável que os párocos, e os padres em geral, até porque são muito poucos no nosso país para as necessidades espirituais da população católica, se envolvam directamente e exclusivamente em actividades de tipo social. Muitas vezes tem a ver com as circunstâncias: não há mais ninguém, são iniciativas dele, mas não é desejável. O que é desejável é que haja leigos ou então instituições religiosas que nasceram para isso, que desempenhem esses papéis. Os párocos não se devem empenhar tão exaustivamente que depois prejudiquem as suas funções nos outros sectores da pastoral. A actividade da Igreja em função das pessoas, tem três sectores: antes de mais a palavra, tudo o que tem a ver com o anúncio da palavra de Deus, a sua explicação, a catequese, o seu aprofundamento; depois a liturgia, tudo o que seja a celebração cristã, os sacramentos, a iniciação à vida de oração; depois a prática da caridade, a projecção social do evangelho, a assistência às necessidades das pessoas. Estes três sectores - palavra, liturgia e caridade - são muito coincidentes. Com certeza que quem está à frente de uma comunidade cristã tem que lidar com eles. Não tem que fazer exclusivamente apenas algum.

Considera que o conceito de caridade está deturpado?
É uma palavra muito bonita que tem a ver com a caridade divina. O próprio amor de Deus, a forma como ele nos toca e através de nós passa para os outros, tem mais expressão e mais força do que um simples sentimento humano. É preciso chamar a atenção para essa palavra, recuperá-la, para um apoio aos outros, uma atenção aos outros, que tem em Deus a própria fonte. O que acontece com a caridade acontece com o amor, com a verdade e a justiça que podem cair na sua caricatura. O desgaste histórico das palavras está relacionado com o desgaste dos sentimentos. A única cura é voltar à fonte.

O papel da Igreja na área social passou da exclusividade para uma partilha com a sociedade civil e o Estado. Como é que considera actualmente o relacionamento com o Estado?
Há algum esclarecimento e alguma tensão que é inelutável porque a sociedade é um corpo vivo onde as várias realidades estão sempre em relação dinâmica. Faz parte da vida social. Tem muito a ver com a auto-concepção do Estado. Como é que ele se vê enquanto administração pública, como se vê a si próprio e à sua missão. É afirmação clara da doutrina social da Igreja, mas também já é uma afirmação das instituições como a União Europeia, nos seus textos, o princípio da subsidiariedade. A sociedade não é uma administração geral e depois um conjunto de indivíduos atomizados. A sociedade é composta por seres em relação que vão criando instituições, desde a base ao topo, desde a periferia ao centro. A começar pela família, onde nascemos, a nossa primeira vinculação social; depois as agregações locais, relações de vizinhança, são mil uma acções da espontaneidade social que levam as pessoas a interessarem-se pelos problemas de outros; ao nível regional, na igreja; e só depois a administração pública, cuja missão não é fazer tudo, mas potenciar aquilo que a espontaneidade social cria. Isso é que é o princípio da subsidiariedade. O bem comum é permitir que toda a pessoa possa desenvolver-se em cada uma das suas dimensões. O Estado, que não vejo como oposição, mas como o nosso Estado, deve potenciar e não substituir e, por outro lado, deve considerar-se supletivo para todas aquelas coisas que não estejam garantidas pela espontaneidade social. É uma outra maneira de ver o Estado. Deve ter ideias claras e antes de mais saber o que a administração é em relação à sociedade. Não cria a sociedade, potencia tudo aquilo que a sociedade gera.

Há alguns sintomas de que essa relação é pautada pela confusão de papéis. O caso concreto do ATL e a forma como o Estado tratou as IPSS, por exemplo…
Em relação aos ATL o que houve foi precipitação. AS IPSS foram surpreendidas por uma medida que não entra em linha de conta com compromissos assumidos e com a prática estabelecida que servia as populações. Além dessa precipitação, que tem causado problemas graves no funcionamento das instituições, há a tal questão de fundo: é essa a missão do Estado? Se já existe e funciona porque é que o Estado vai fazer e vai fazer ao lado? Não me parece que esteja a respeitar as próprias famílias que recorriam, com uma apreciação positiva, às IPSS. Não é essa a missão do Estado.

Uniformizando o modelo educativo…
O Estado pode entender que na educação, formação ou apoio à formação não deve haver nenhuma definição confessional. Eu pergunto: mas é o Estado que deve entender isso ou são as pessoas? Quem determina a educação dos seus filhos? É a administração pública ou os pais e os encarregados de educação? Este processo de transmissão cultural, onde entra necessariamente a convicção religiosa, é do âmbito estatal ou do âmbito dos cidadãos, concretamente das famílias, como transmissão espontânea de valores? A questão é essa. Já sabe qual é o sentido da minha resposta.

Quando muito considera que devia permitir-se a liberdade de escolha…
Claro. Isto vai pela acumulação de respostas e não pela extinção das que existem. Em termos de administração pública não se pode ir contra a sociedade. Infelizmente isso acontece, mas entra-se em esquemas que não são humanistas.

É nesse sentido que vai um certo laicismo militante? Uma espécie de religião do laicismo?
Claro que vai. É uma caricatura da religião. É uma convicção de não afirmação que é uma afirmação ao contrário. É querer impor que um humanismo verdadeiro não pode incluir uma convicção religiosa explícita. Quem determina isto? É uma anti-religião, uma contrafacção da religião e, às vezes, com uma intensidade negativa que as próprias religiões já não têm, concretamente o cristianismo católico com tudo aquilo que o Varticano II nos trouxe: o estar com os outros, partilha de ideias e convicções, a reflexão sobre a dignidade humana.

Julga que, em última instância, do que se trata é de uma oposição Estado versus Igreja?
Não gosto de colocar as questões a esse nível tão formal porque na prática não as verifico assim. Na administração pública não há um pensamento uniforme, nem atitudes práticas uniformes. Tenho dificuldade de dizer “o Estado”, como tenho dificuldade de dizer “a Igreja”. As coisas são resolvidas caso a caso.

Mas quando verificamos que o Estado e a Igreja demoram a entender-se no acordo de relações entre ambos a que se dá o nome de Concordata…
Não sejamos ingénuos. Estão presentes convicções e contra-convicções como aquelas a que já aludi. Há pessoas mais rígidas nelas e outras que são mais maleáveis e dialogantes. Nestes últimos meses, pelo que tenho ouvido, parece-me que se estão a dar passos importantes, designadamente na saúde, nas capelanias, na cultura… As informações que tenho é que se estão a dar passos firmes. Talvez até ao Verão se consiga a plataforma do acordo. Há uma zona de indefinição que urge ser resolvida para evitar as confusões que se têm verificado.

Na base, na relação da Igreja com a sociedade, surgem também alguns sinais de fragilidade. Há um certo desquite entre as pessoas e o catolicismo…
Numa sociedade tradicionalmente católica como era a portuguesa há uma questão em aberto. A sociedade hoje é muito secularizada. A distinção entre o que é confessional e o que é uma cultura social alargada é maior, mas num país como o nosso, uma coisa é o Norte, o Sul e as Ilhas. Temos que ver em cada local como é que essa secularização acontece ou não. Há muitas localidades e instituições onde essa definição social e cultural continua a ser feita em termos religiosos e reivindicada assim, em termos pessoais e até públicos. As realidades são diferentes. É preciso respeitar as circunstâncias locais, não partir do geral. Temos que pensar a sociedade a partir dela e não das nossas ideias sobre ela. A administração pública, devo confessar, tem revelado algum bom senso, no concreto.

E em seu entender esse é o caminho?
Da clareza da proposta é. Nem todo o religioso é cristão. O cristianismo afirma-se como um proposta, que é aquela que nós lemos nos textos evangélicos, de grande exigência. Nós estamos claramente neste clima de secularização, estamos no tempo de redefinição cristã e reconfiguração comunitária, mas eu acho que isso é um ganho. As pessoas começam a perceber que ser cristãos não é apenas uma referência cultural genérica e sentimental, para alguns momentos da existência, mas requer aquilo que o próprio Cristo propôs que é um caminho estreito. Nos primeiros séculos cristãos, é bom lembrar isso, acedia-se ao baptismo e à entrada no cristianismo, a não ser que se tivesse nascido numa família cristã, depois de um longo processo de catecumenato e a pertença à comunidade requeria uma vida muito exigente.

Esse caminho é compatível com a evidente desconstrução social, de instituições como a família?
As próprias famílias têm que ser cristãmente redefinidas. As que querem permanecer no âmbito do cristianismo têm que ser redefinidas. As palavras de Cristo no Evangelho são muito claras, quer em relação à vida pessoal quer em relação à vida familiar. Não se trata de condenar quem não venha connosco, mas trata-se de afirmar com clareza a proposta cristã. A maneira como Jesus apresenta o cristianismo é sempre em termos de um certo contraste e uma certa tensão. São o sal da terra, a luz do mundo, o fermento na massa. É tudo do pequeno para o grande. Nas comparações de Cristo ser cristão não é ser a terra e ser a massa. Há uma tensão que se perdeu…

Que desaguou, porventura, em expressões do tipo “sou católico não praticante”…
Esse género de coisas, à luz do Evangelho, é muito problemático. E deve continuar assim. Se o sal perde a força não serve para nada. Se estamos numa sociedade pluralista ao menos que dessa pluralidade a proposta cristã se perceba. Só assim faz sentido o diálogo cultural. Com propostas diferentes e bem definidas e precisas... A proposta cristã tem que ser apresentada em três acepções: a verdade, que tem que ser explicitada, que é a coincidência entre aquilo que Cristo traz comparado com as nossas mais profundas aspirações em termos de realização; a beleza cristã, que encontrou forma plástica para se exprimir nas artes; e a bondade. A verdade e a beleza do cristianismo traduzem-se numa maneira bondosa de ser e de se relacionar.

Esta tendência das pessoas, por todo o mundo, procurarem uma religiosidade onde quer que seja, nos livros, nos filmes, nas práticas exotéricas, nos rituais maçónicos, está relacionada com o desencanto com as religiões clássicas, por assim dizer?
A religiosidade espontânea não se confunde com o cristianismo. É uma das tensões que é preciso retomar. Qualquer pessoa humana precisa e sonda uma profundidade e uma segurança última que faz dele um animal religioso. Depois há o facto da religiosidade ter entrado nos consumos, para um sucesso fácil, para práticas e ritos que o mercado está a aproveitar. Há um diletantismo de tipo new-age que faz uma espécie de cocktail, juntando um bocadinho de religiões tradicionais, um bocadinho de exoterismo, um bocadinho de fricção científica, que se torna muito apetecível mas, no fundo, como costumo dizer, diverte sem converter.

Mudemos de assunto. Recentemente D. Jorge Ortiga foi reeleito para a Conferência Episcopal Portuguesa. O Bispo do Porto manteve a presidência da Comissão da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais e é também membro do Conselho Permanente da CEP. A dada altura chegou a pensar-se que D. Manuel Clemente podia ser candidato…
Da minha parte nunca se pôs essa hipótese. Num momento destes não era sequer desejável. D. Jorge Ortiga estava disponível para outro mandato e tem feito um belo trabalho.

Acha que a Igreja comunica bem?
Eu não conheço nenhum país da Europa em que a Igreja tenha uma presença tão forte na rádio como em Portugal. Mesmo na televisão também não sei de nenhum exemplo em que a Igreja tenha todos os dias, de segunda a sexta, mais de 20 minutos num canal público. Tem uma rede de jornais regionais, no âmbito da Igreja, capaz de atingir três milhões de leitores, mais do que os jornais diários. Tem uma agência de informação, a Ecclesia, com muita qualidade. E depois há sites de referência: o do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura é do melhor que eu conheço, com actualizações frequentes. Quanto à comunicação propriamente dita fazemos o que conseguimos fazer. A proposta religiosa tem uma linguagem que pode ser apurada e melhorada. Mas tem uma questão de fundo: o que temos para oferecer é o Evangelho e esse não se dilui porque perde a força. Há um limite que é do próprio Evangelho.

A Igreja está a perder poder? Já não tem a influência que tinha? Já não decide votações, como por exemplo no referendo ao aborto?
A Igreja envolve-se como exercício de cidadania. Os cristãos têm um conjunto de valores e de mensagens que são recordados através dos pronunciamentos da Conferência Episcopal, mas depois tem o comportamento dos cristãos. Foi muito interessante ver, nesse referendo, a proliferação de testemunhos, organizados ou individuais, de cristãos, mães, pais, médicos, professores. Esse é o lugar da Igreja, o testemunho dos cristãos. E convém não esquecer que, apesar do enviesamento da discussão, houve mais 200 mil pessoas a votar «não» em relação ao primeiro referendo. Foi um ganho de convicção e de cidadania.

Que marca pretende deixar enquanto Bispo do Porto? Quais são os seus objectivos?
A redefinição cristã e a reconfiguração da comunidade numa sociedade claramente mais secularizada. Que tudo aquilo que é o catolicismo dos habitantes da diocese do Porto, onde eu estou incluído, seja redefinido em termos evangélicos mais aprofundado na sua convicção. Saber exactamente o que é ser cristão hoje e redefinir a sua vida em todas as suas vertentes a partir daí. O Cristianismo é para quem quer ser cristão mesmo a sério. Não a meias ou em partes. A recomposição da comunidade cristã deve ter em conta novas características da sociedade e ter em conta o que vem de trás.

Ser Bispo do Porto é a mesma coisa que ser Bispo de Lisboa, ou de Braga?
Quanto à função de ser bispo é idêntica; quanto ao ser Bispo no Porto tem as particularidades da diocese.

Quais os antecessores que mais se revê?
Em todos, mas há referências culturais e históricas que vêm logo ao de cima. D. António Ferreira Gomes, D. António Barroso, por causa dos tempos difíceis em que viveram. Os dois últimos antecessores directos estão vivos e sou amigo deles: D. Armindo Lopes Coelho e D. Júlio Tavares Rebimbas são excelentes referências.

 

Data de introdução: 2008-05-06



















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